A profundidade da dor e a superficialidade da exposição
31/03/2024 - 18:01Espalhar fotos e vÃdeos de vÃtimas fatais de acidentes constitui um ato criminoso.
* Por Rogério Newton
Todo mundo comentando a grande chuva da última quinta e sexta-feira. Dizem que durou mais de doze horas. Alguns vieram falar comigo só pra dizer que o Mocha havia transbordado, fato que não acontecia há anos. E falavam isso satisfeitos, como se fosse um ajuste de contas ou sinal de que o riacho não morreu. Não só o Mocha. Cheguei em Oeiras sexta-feira de manhã e pude ver, ao passar perto da estrada da Santa Rosa, um riacho tão cheio que as águas barrentas topavam as folhas das árvores. E o Canindé, nosso judiado rio, também rebelou-se, saindo do leito arenoso.
Sábado de manhã, fui dar uma volta, como sempre faço, na agradável estradinha que liga a Bica ao sítio Maracangalha. Tudo muito bonito. A paisagem úmida e verde. Encontrei Vicente Camarço, de bicicleta, voltando do curral, carregado de leite, justo na passagem do Riacho dos Negros. À guisa de cumprimento, falou:
- Disseram que Deus tinha morrido. Taí a resposta!
Como todo sertanejo, estava alegre com a chuva. Arou a terra e enterrou sementes de milho, antes do aguaceiro de anteontem. Só lamenta não ter plantado arroz: o baixio onde sempre desenvolveu aquela cultura está debaixo d’água. Comentou isso sem perder o entusiasmo: o mais importante é a chuva! E a terra prenhe.
Dentro de sua pequena propriedade, passa o Riacho dos Negros, no formoso leito de pedras, vindo – dizem - da Barriguda, onde tem as nascentes. Curioso é que muitos falam do Mocha, mas raramente se referem ao Riacho dos Negros. Ora, este pequeno córrego vive hoje uma situação melhor que a do Mocha, cujo ecossistema já recebeu tantas agressões que, em muitos pontos, está deplorável, especialmente dentro da cidade. O Riacho dos Negros, não. Não sofreu como o Mocha e está razoavelmente conservado em todo o seu curso, que não deve passar de 4 quilômetros. Triste dizer, mas é verdade: se o futuro repetir o passado e, pior, o presente, e a cidade se expandir na direção do Riacho dos Negros, as áreas verdes que o acompanham se transformarão em algo semelhante ao que fizeram com as margens do Mocha.
O Riacho dos Negros é um dos principais afluentes do Mocha, desaguando na famosa Forquilha do Rio, que, até a década de 1980, foi um dos lugares preferidos pelas lavadeiras. Poucas horas depois da chuvarada de ontem, a água ficou empoçada em vários locais do Mocha, prejudicado pelo açude Soizão, que tranca a água e não a deixa escorrer pelas “quintas exuberantes de verdura”, como cantou O. G. Neste momento, a água cor de terra continua a escoar pelo Mocha, após a Forquilha do Rio, mas só enquanto houver água no Riacho dos Negros.
E o Pouca Vergonha, hein, gente?! Tão sofrido como o Mocha, mas com a vantagem de não ter uma barragem a aprisionar suas águas. Ele também socorre o Mocha, que, como sempre, principalmente na situação em que se encontra, recebe-o de bom grado, embora o lugar de encontro entre ambos, próximo à Ponte Grande, esteja como um louco de rua, feio e sujo.
No momento em que escrevo esta pequena crônica para saudar a chuva, volta a cair água sobre Oeiras. Graças a Deus!, dirá Vicente Camarço. Digo o mesmo. Pra mim também, a chuva é o que melhor representa a vida, a poesia e o mistério, que todos queremos e muitas vezes não sabemos nem temos a coragem de perceber, de curtir e de amar.
*Rogério Newton é poeta, escritor, ambientalista e defensor público