
Uma história de loucura em Oeiras

Em Oeiras, numa época em que a farmacologia ainda não havia iluminado o campo da psiquiatria, e mesmo durante muito tempo depois, muitas casas ainda mantinham um quartinho para abrigar o louco da família. Outros loucos viviam pelas ruas. É provável que o casamento entre parentes, leve à formação de genes deletérios, motivo pelo qual há tantos casos de psicose em famílias de Oeiras. Na cidade mais velha do Piauí, entranhada no sertão de dentro, o casamento entre parentes era uma prática comum. Além da genética, há fatores ambientais, como as perdas emocionais mal elaboradas, sejam por morte ou separação de pessoas queridas, sejam pela perda de bens materiais, que contribuem para desencadear uma doença mental em quem já tem predisposição genética.
Em minha infância, morei numa casa ao lado da casa de D. Maria, a louca que matou a sogra. Ela vivia isolada num quartinho no fundo de sua casa, era neste mesmo espaço onde comia e fazia suas necessidades fisiológicas. Outras vezes, sem entendermos como conseguira, a gente a via trepada no teto da casa.
O que separava o meu quintal do quintal da casa dela era só um muro. Sempre que eu me apoiava no muro para vê-la, ela gritava: “Sai daí, João Carvalho velho do diabo”. Outras vezes era mais dócil, e até recitava para mim, um poema que um poeta por quem se apaixonara na juventude, havia feito para ela. Ainda me lembro da primeira estrofe: "Maria, tu és o perfeito tipo brasileiro/a cor morena, a palidez da face/a tez altiva da mulher que nasce/sob o céu palpitante do cruzeiro". Nunca esquecera o poeta nem o poema. Casou-se com outro homem por imposição do pai. Este, quando soube que ela pretendia fugir com o poeta, apressou-se em casá-la. Pouco tempo depois de casada, entrou num surto psicótico, era o início de uma Esquizofrenia que lhe consumiria décadas de vida, numa época em que a psiquiatria ainda vivia na escuridão. Os pacientes, se voltassem dos manicômios, voltavam piores, e os cuidadores familiares acabavam apelando para curandeiros, o que mais agravava o quadro do paciente. Foi num surto psicótico, após retornar de uma visita a um curandeiro, que D. Maria matou a sogra.
Não sei se esta minha experiência vivida na infância, quando descobri que “não há ninguém por mais louco que seja que não tenha neurônios sadios, e que não há ninguém por mais sadio que seja que não tenha neurônios lesados”, contribuiu para que eu me interessasse por Medicina, e dentro desta, pela Psiquiatria e pela Neurologia, mas foi o que aconteceu.
Meu primeiro contato com a Psiquiatria começou no quinto ano de Medicina, em 1989. Nesta época, os loucos do Piauí, presos no Hospital Areolino de Abreu, já haviam sido desacorrentados por Clidenor Freitas. Era uma era após a descoberta do Haloperidol, a droga que revolucionou a Psiquiatria, e eu tive a oportunidade de conhecer o Haloperidol e outros neurolépticos ou antipsicóticos, como a Levomepromazina, a Clorpromazina, e drogras que evitavam impregnação pelos neurolépticos, como o Biperideno e a Prometazina, e ainda tranquilizantes, como os Benzodiazepínicos. Era o que eu precisava para ajudar a louca da minha infância, que ainda vivia enclausurada num quartinho de sua casa. Sempre que eu viajava para Oeiras, levava antipsicóticos, anticolinérgicos e tranquilizantes para ela. A família administrava os medicamentos sem tirá-la do quartinho, até o dia em que a viram voltar à realidade. O tratamento funcionou, e D Maria pode sair das profundezas do seu inconsciente, e do quartinho em que vivia, para o convívio com seus familiares. O marido não aceitou voltar a morar com a mulher que matou sua mãe, temendo nova recaída, e ela foi levada para a casa de uma filha, onde até hoje vive em remissão, inserida no meio familiar, ajudando nas tarefas domésticas, tomando doses mínimas de Haloperidol.
Hoje, a realidade é outra, e manicômios e quartinhos de fundo de casa( que mais serviam para as famílias esconderem seus loucos da sociedade), foram proscritos e tiveram fim. Pacientes que padecem de doenças mentais são tratados atualmente, nos Centros de Apoio Psicossocial – CAPS, e/ou inseridos no meio familiar, com drogas ainda mais eficazes e melhor toleradas que o Haloperidol, mas este foi o neuroléptico usado no tratamento de D. Maria, levando-a a sair do quartinho em que vivia presa, para dentro de um lar, voltando assim, a conviver com seus familiares.
*João Carvalho Fontes é médico