
A palavra e o tempo, por Fonseca Neto

Deu-me de presente outro dia o acadêmico Dagoberto Carvalho Jr. um livro conteudado de textos que lavrou em vária circunstância: “A palavra e o tempo”, editado há vinte anos. Coletânea de artigos e outras textuações que revelam a lavra de um escritor amadurecendo enquanto palavreia os cenários do seu tempo.
Não tendo ido a Oeiras nestes dias finais do tempo quaresmo-pascal, andei passeando pelas páginas do livro em busca do que ele escreveu sobre essa cidade que é filha da América portuguesa e crescida nos sertões do Piauí. É onde nasceu Carvalho Jr. e de cujas temporalidades haure histórias extraídas de pessoas e objetos. Mas, sobretudo, do limbo de oralidade em cujo ventre as palavras se fazem vocábulos.Oeiras do Piauí habita sua memória, permeia o conjunto de sua obra e desta reponta, quer escreva no/sobre o próprio Piauí, idem, Pernambuco, idem, Portugal. Aliás, eciano tal é, Oeiras reponta inclusive de sua escritura feita nos tratos da recepção do mestre da Póvoa.
Em “A palavra e o tempo”, nas linhas e entrelinhas, vejo e entrevejo a cidade setecentista do Piauí em diverso repertório. Vejo-a na arte do pintor retratista Baltazar José Estevam Dornelas Câmara. Este, um artista pernambucano que se apaixonou por Oeiras e que realizou, em óleo, e a seu pedido, o retrato do visconde da Parnaíba, uma das formas de monumentalizar o patronato do Instituto Histórico de Oeiras, do qual foi sócio benemérito. Da mesma forma, entre outras, fixou em tela a Igreja do Rosário. Câmara, um dos mais renomados artistas pernambucanos do século passado, nascido em 1890, fundador e diretor da Escola de Belas Artes do Recife.
Na evocação do marquês de Pombal, ao conferenciar na terra de Sebastião José de Carvalho e Melo, o conde de Oeiras. Sim, lá em Portugal – e saibam quantos a esta virem que Carvalho Jr. obrou unir as duas Oeiras, a de lá e a de cá, construindo meios de mútua cooperação cultural. Assinala que a marca iluminista da era pombalina foi pespegada ao Piauí quando da instalação da capitania, em 1759, e a imediatamente posterior criação da primeira malha “urbana” piauizeira, em 1762. No depoimento apaixonado quando empossado membro do Conselho Municipal de Cultura de Oeiras, em 1987, bradando pelo valor a defender da trissecularidade histórica dessa cidade; e quando assumindo a presidência do Instituto Histórico pela segunda vez, reiterando seu papel de educador social e patrimonial – quer um “Instituto mais atento à mocidade das escolas e aos problemas quotidianos da cidade que se vai descaracterizando a olhos vistos”; diz que não quer de Oeiras “apenas uma drumoniana ‘fotografia na parede’.”.
Reponta e ecoa numa outra e algo longínqua “Festa da Vitória”, isto é, do Instituto Histórico de Vitória de Santo Antão, na investidura de sócio correspondente desse sodalício; e também quando ecoa a memória do médico George Gardner passando pelo Piauí lá no tempo de Sousa Martins – e dela impressiona-o o registro da “agressividade do Pulex penetrans (Lineu), o bicho de pé do nosso caboclo”, que às vezes levava até à “amputação de membros infestados...”; e de Oeiras anotou sobre suas febres malignas e intermitentes, no começo e no fim da estação das chuvas, quando prevalecem os ventos sudestes” e também as oftalmias, tendo realizado operação de catarata na capital do Piauí, “fazendo um cego enxergar” – e deixando em nota: “foi-me dada a oportunidade de realizar várias operações que poucos jovens cirurgiões da Inglaterra podem tentar”. Catarata e Litotonia.
Tanto fala, e fala bem, de Burane, Costa Machado, Ferrer Freitas, Expedito, Zuleica, Possidônio. E como leva tão longe em sua alma, na fala e no texto, personagens de Oeiras, o universo da cidade do padre Miguel e por tantos padres outros marcada.
Nas linhas plenas dos discursos de entrada na Academia Piauiense de Letras. De seu ingresso; do ingresso do médico-confrade Humberto Guimarães. Do que fala e do que escreve esse apaixonado por províncias viçosas, de cabeças molhadas pelos litorais e o corpo imerso nos sertões.
A Oeiras que habita seu destino é um coração pulsante dessas províncias – e Piauí, Pernambuco e Maranhão dela/e se enamoraram.E ela se quis invicta. Vitoriana a seu modo.
Fonseca Neto é professor da Ufpi.