
Cálice de perfume

* Por Rogério Newton
Personagens de Somos Todos Inocentes faziam passeios ao Morro da Sociedade. O autor do romance, O. G. Rego de Carvalho, tinha fascínio por aquele sítio, pelo Riacho Mocha e suas “quintas exuberantes de verdura”, ruas, becos e casarões. Dos escritores nascidos em Oeiras, ele foi o que mais soube captar a cidade poética.
Um andarilho – pelo menos ele se autodenominava – passou por Oeiras na década de 1970 e também ficou admirado com o Morro da Sociedade. Chamava-se La Banca, alcunha que pôs em si mesmo. Fotografou as pedras sugestivas, especialmente a que tinha (ainda tem) a forma de cálice. Depois dele, o professor Gerardo Helcias capturou com sua lente a beleza do morro. Os dois foram pioneiros em revelar com imagens o que alguns olhos já viam.
Enquanto a cidade se resumia ao centro histórico e aos bairros Várzea, Rosário, Canela, Capão, Bomba e Oeiras Nova, o Morro da Sociedade e os outros morros que circundam Oeiras não recebiam nenhuma ameaça séria contra seus ecossistemas. Mas agora que a cidade está mais crescida e a expansão urbana é um fato, não podemos mais dizer o mesmo.
Além do Morro da Sociedade, os morros da Cruz e do Leme são talvez os que mais sofrem com intervenções resultantes do crescimento urbano que, pouco a pouco, conspurcam suas belezas, denigrem seus ecossistemas. Aqui, permita o leitor uma indagação: esse crescimento poderia ocorrer sem depredação daqueles sítios? Sim, bastaria conciliar o progresso com conservação.
Mas, infelizmente, essa equação nunca foi um dever de casa. A expansão urbana dá-se de forma desordenada, sem racionalidade, totalmente ao sabor das circunstâncias e de interesses individuais e imediatos, que terminam prejudicando as maravilhas naturais das quais os morros são exemplos inegáveis. A mesma lógica ocorre nos riachos Mocha e Pouca Vergonha e outras áreas verdes, também objetos de ocupações, cujo ponto em comum tem sido sempre a recusa a qualquer possibilidade de conciliação entre civilização e natureza, embate no qual esta sai sempre perdedora.
Falando mais precisamente do Morro da Sociedade, pode-se afirmar que as ameaças a seu ecossistema e à sua beleza transformaram-se em depredações evidentes, que poderiam ser ou ter sido facilmente evitadas, se houvesse sensibilidade e visão das pessoas que a praticam e um mínimo de planejamento urbano por parte do poder público municipal, ou pelo menos uma vontade deste em fazer valer os critérios mínimos aceitáveis de urbanismo, ou ainda a vontade de aplicar o art. 159 da Lei Orgânica do Município, que declara os morros da cidade e o Riacho Mocha áreas prioritárias de preservação.
A lógica é sempre a mesma: pessoas muito pobres constroem seus casebres no entorno do morro. Pouco a pouco, outras vão subindo as encostas acidentadas, fazendo mais casebres e cercados, em locais manifestamente impróprios para edificações. Entre a vegetação arbustiva e pedras que lembram répteis, mamíferos, canhões, cálices e outros objetos, elas vão sobrevivendo e, ao mesmo tempo, destruindo ou descaracterizando a cobertura vegetal e as formações sugestivas.
Por sua beleza e importância ambiental, o Morro da Sociedade (como os morros da Cruz e do Leme) deveria ser transformado em Parque Ecológico Municipal, para recreio, lazer, prática da arte de caminhar e para continuar como viveiro de espécies da flora e da fauna. Este morro, como os demais, são necessários para o equilíbrio climático da cidade.
Não custa relembrar, de novo, O. G. Rego de Carvalho, que cantou “a brisa dos morros, cheia de perfume silvestre”. E reavivar as trilhas feitas por pés anônimos, nas manhãs ensolaradas.
* Rogério Newton é escritor