
Caminho de volta

Por Rogério Newton
Jamais esquecerei o dia em que fui à casa do poeta Raimundo da Costa Machado. Sua filha, Rosamunda, levou-me ao quarto onde ele estava deitado sobre a cama. Deixou-nos a sós. Liguei o gravador, embora soubesse de sua inutilidade para captar a fina matéria que se apresentava ante meus olhos.
O sol penetrava pelas frestas do telhado, em cujos feixes de luz dançavam finíssimos grãos de poeira. O silêncio era quebrado por fragmentos de vozes da vizinhança, um carro que passava na rua, um cachorro latindo ao longe. O quarto, como que protegido das impurezas externas, assemelhava-se a um templo, despojado de qualquer ornato. Os poucos móveis, o piso de ladrilhos de barro cozido, a humilde e transparente dignidade completavam-se com a figura do poeta, de face sereníssima.
De repente, me senti um invasor. Por um momento, apoderou-se de mim a vontade de voltar atrás, correndo. Não tinha direito, muito menos méritos de tocar a película diáfana, que poderia se quebrar sob o clic do gravador e do peso de minha ânsia e de minhas mãos, enormes.
Com cuidado, medindo as palavras, quase a pedir perdão, comecei a entrevista. Sua voz frágil, mas límpida, era de um homem nos últimos dias de vida. Nenhum remorso, nenhuma dor brotava dos lábios e do peito, parcialmente coberto pelo lençol. Às vezes, entre nós, pairava o silêncio, como se ele o quisesse para ouvir melhor o vento ou descansar de toda veleidade humana.
Falou dos amigos e das lutas do passado. E entre eles não poderiam faltar Possidônio, Expedito e Gaudêncio. Deste admirava a poesia, não só dos versos, mas também das cartas e da boa prosa que os dois teciam, quando o autor de Poemas da Íntima Habitação, de férias, vinha a Oeiras.
Eu ainda não conhecia a foto da inauguração da energia elétrica. A rua, eufórica, cheia de gente. Costa Machado foi o escolhido para fazer a saudação, iniciada com versos de Bilac. Não lembro se ele falou sobre isso, mas sei, de certeza, que recitou-me poemas que a memória conservava por puro amor, quem sabe capturados de Labaredas e Chaminés, denominações dadas por ele, compenetrado ou satírico, às seções publicadas na Página das Musas, de O Cometa.
Enquanto conversávamos, Rosamunda entrou, de mansinho, trazendo uma bandeja com doce de limão e um copo d’água. Servi-me da delícia, em pequenas doses, perguntando-me o que tinha feito para merecer a inefável poesia daquela manhã.
Quando chegou a hora de partir, ela ficou conversando comigo à porta da rua. Despedi-me e fiz o caminho de volta, sentindo o vento no rosto, quase sem pisar as pedras da Rua do Tanguitá.