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O portorriquenho Ricky Martin começou a conquistar o mundo aos 12 anos de idade, quando se tornou integrante do grupo pop (pré-)adolescente Menudo. Era apenas o começo. Adulto, conquistou até mesmo os autocentrados Estados Unidos, pela via da latinidade quente de sucessos dançantes da carreira solo, como María (1995) e Livin’ la Vida Loca (1999). Hoje, o ex-miúdo tem 39 anos e acaba de lançar um livro autobiográfico, adequadamente batizado de Eu (ed. Planeta, 299 págs.).
Pode soar ingênuo alguém querer buscar coerência e sinceridade por trás de uma máquina fazedora de dinheiros (e moedora de gentes) que rende milhões de exemplares vendidos dos discos e livros de Ricky. Mas Eu resulta interessante, por capturar em pleno ato um tocante processo de autodescoberta de seu autor. Não é que Ricky esteja contando seus achados – ele os está vivendo, no exato instante em que escreve seu Eu.
Talvez acabe surpreendido o leitor que tiver paciência para escalar a escrita precária e atravessar as inúmeras vezes em que o autor proclama variações da proposição “se eu não tivesse feito a minha parte, nunca teria chegado aonde estou agora”. Eu começa arrogante e autodefensivo, disposto a conquistar o rebanho crente na fábula por trás de outro de seus mantras, “agora estou completo” – por acaso alguém aí está completo?
Ricky finca bandeira logo na terceira página de texto: ”Finalmente resolvi contar para o mundo que aceito a minha homossexualidade”. A saída do armário anunciada em março de 2010, em seu site particular, provocou muita chacota e pouca vontade de escutá-lo. Os menos céticos zoaram: grande novidade, todo mundo sempre soube. Os mais céticos partiram para o ataque: tudo se trata de mero comércio; transformado no livro já então anunciado, o interesse pelas fofocas gays de Ricky garantiria sobrevida a um ídolo já descendente.
Ainda que tais constatações tenham lá seus fundamentos, a rejeição agressiva à “verdade” que o ex-Menudo queria contar esconde atrás de si muito mais que deboche – esconde, por exemplo, o medo renitente e persistente do assunto-tabu, de quaisquer assuntos-tabu. Pois a história de Ricky Martin, mesmo literariamente deficiente, é bem mais complexa e rica do que nossos temores querem simular. Seu livro é revelador, desde o início autodefensivo.
Como se não percebesse exatamente o que está dizendo, Ricky principia pela narração desajeitada da infância que lhe roubaram, à medida que ele crescia como trabalhador braçal da “grande” indústria de entretenimento. “Foi uma mudança muito abrupta, que poderia ter sido traumática se eu não estivesse nas nuvens”, afirma ao contar que aos 12 anos foi morar “sozinho” em Miami, abandonado à própria sorte por um pai psicólogo (?!) e por uma mãe que rebatia com firmeza as tentativas do menino de desistir, por cansaço, da aventura épica e glamurosa. Adiante, os pais se separarão e Ricky falará com mágoa sobre ter ficado no centro da desavença do ex-casal. Isto ele não explicita, mas não é difícil deduzir que o capital “intelectual” reunido pelo garoto que rebolava Não Se Reprima estivesse no centro das di$puta$ dos “adultos” que (não) o educavam.
“Nunca dizíamos não”, revela timidamente impressões guardadas dos cinco anos como Menudo. “Não importava o que nos fosse pedido, a resposta era sempre positiva.” Recém-saído da adolescência e intimado pela mãe a não se retirar do show business, foi morar sozinho outra vez, ora em Nova York, ora na Cidade do México, onde deu prosseguimento paralelo às carreiras de ator de TV, teatro e cinema e cantor pop. Aos sequiosos por fofocas de alcova, nessa primeira parte do livro Ricky é módico e arisco na descrição de suas descobertas e vivências (homos)sexuais. “Já achava difícil ser latino em Hollywood, o que poderia ser mais difícil do que ser latino e gay?”, sinaliza, justificando a longa permanência no armário. E então começa a segunda parte de Eu.
“A febre durou mais ou menos uns dois anos, ao cabo dos quais estava completamente vazio e entorpecido”, escreve no trecho sobre o estouro com Livin’ la Vida Loca, período que relata como “estar cercado de gente quase o tempo inteiro e ainda se sentir só”. Ricky não utiliza o termo “depressão”, mas para bom entendedor basta a descrição das manhãs em que não conseguia reunir forças para levantar da cama – enquanto o mundo lá fora bombava seu êxito.
Menciona o interesse crescente que passa a sentir pelas “tantas crianças que são impedidas de aproveitar seu direito básico de ser criança”. Descobre, com horror, a realidade clandestina do tráfico de seres humanos planeta afora. Embrenha-se por esse submundo, cria uma fundação de combate ao mal, conhece histórias de pagamentos de US$ 15 mil pela virgindade de uma criança.
“Talvez até fosse preciso ter iniciado a luta contra o tráfico de pessoas para compreender a injustiça que é roubar uma parte da vida de alguém”, constata, não se sabe se percebendo ou não que poderia estar falando do próprio passado de menino miúdo Menudo. Paralelamente, deixa extravasar certo ressentimento em relação à educação e à religião, que, diz, o ensinaram a considerar “pecado” ser como ele é – ou seja, homossexual.
“Que terrível ironia! Eles me atacam, mas me amam; eles me aceitam, mas me excluem. Falam da homossexualidade como uma coisa que pode ser ‘curada’ através da oração e reparação”, protesta, lançando a esmo um dardo que pode furar balões nas igrejas, na família, na sociedade ou mesmo em seu fã-clube.
Em 2008, cristaliza a decisão de que quer ser pai. Discreto como costumam ser os pais célebres e as mães famosas em circunstâncias semelhantes, providencia uma barriga de aluguel, da qual nascem os gêmeos Matteo e Valentino. Afirma que o desejo de reconhecer publicamente sua homossexualidade surge da recusa à perspectiva de levar uma vida mentirosa perante os filhos. De Michael Jackson a Xuxa, nenhuma celebridade até aqui havia se disposto a dar detalhes sobre trâmites legais, inseminações artificiais e motivações. Ricky o faz.
É aí que entra o processo de feitura de Eu. É evidente que a parte final do livro foi escrita sob o impacto da tomada de coragem e da concretização do “outing” que, como tantos insistem, já era conhecimento até do Papa. “Muitos me desencorajavam, dizendo que não havia necessidade e que a minha sexualidade era assunto meu e de mais ninguém. E apesar de estarem certos até certo ponto, naquele sentimento havia também uma pequena dose de preconceito que hoje vejo como extremamente prejudicial”, descobre ao nosso lado.
Bem antes da última página, o ex-Menudo já parou de ressaltar ad nauseum o esforço que fez para “chegar até aqui”. Parece aliviado, mais que “completo”, como jurava se sentir nas primeiras linhas. Nada disso, o que ele afirma na chegada é em tudo diferente do que havia dito na partida: “Tenho que saber o que posso modificar e o que não me é possível. Minha vida é bonita do jeito que é – por que mudá-la? É assim que deve ser. Eu a aceito e a adoro. Sinto orgulho dela”. Por que não se assumiu mais cedo?, muitos cobram-no com desdém, desde março passado. Simplesmente porque não conseguia, ele responde, candidamente – e nós aqui fora, escorreitos juízes de celebridades, quando assumiremos nossos próprios segredos diante de Ricky Martin?
“Todo mundo vive de acordo com um determinado conjunto de regras aprendido quando muito jovem, muitas das quais nos condicionam a ver o mundo como gostaríamos que fosse, e não como ele realmente é”, constata, com algum espanto, descrevendo sem querer o “estilo” de vida de quase dez entre cada dez terráqueos famosos – e não-famosos. Eu é nós.