
Então lembrei-me do palhaço triste de minha infância

*Jota Jota Sousa
Quando criança, o chegar de um circo em minha cidade era sinônimo de alegria. Entrava em transe quando meus olhos, acostumados ao fluir rotineiro daqueles dias, vislumbravam o vagaroso cortejo dos carros, carregados de objetos multicores e gente de feições incomuns, percorrendo vagarosamente as ruas de minha terra, à procura do melhor locar para erguer o circo. Naquele tempo, três eram os locais reservados para este fim: Ao lado da igreja de Nossa Senhora da Conceição; em frente à escola normal (hoje UESP) e no iniciar do bairro canela, mais precisamente frente à casa de seu Geraldo Barros. Neste último, ali ficou o circo onde presenciei a cena do palhaço triste.
Foi assim: Naquele tempo tinha que optar por uma noite da semana para assistir ao espetáculo, em razão do parco dinheirinho. Isso não significava ficar em casa pelo restante da semana, as demais noites, me juntava à trupe dos outros meninos em situação igual a minha e ficava rondado o circo, para depois postar-me atrás das barracas que serviam de moradia e de camarins dos artistas.
Numa noite, recostado sobre a grade, ouvi com entusiasmo o anunciar do palhaço. Sob aquela iluminação deslumbrante, com milhares de lâmpadas coloridas a piscar, da barraca o vi sair. Desajeitado, rosto branco do pó, nariz vermelho do ruge, ajeitou o suspensório da calça folgada, fez um breve aquecimento e com seus descomunais sapatos desapareceu sob as lonas. Bastou pisar no picadeiro e não sei qual gesto este fizera que a platéia veio abaixo em gargalhadas. O palhaço era bom! Eu o vi na estréia, a noite que escolhi como minha vez. Seguiram-se minutos de longas algazarras, gritaria e risos. Ao final de sua magnífica apresentação, de volta, o palhaço não adentrou a barraca camarim. Cruzou os braços sobre uma das cordas que davam sustentação ao circo, bocejou profundamente e pude ouvir seu triste lamento: “Meu Deus, me ajude! Estou com fome... Que vida meu Deus!... Que vida!... Que vida!” E tristonho recostou sua cabeça sobre os braços cruzados e assim ficou por instantes numa longa e tristonha elucubração.
Muito me intrigou esta cena que meu consciente guardaria para sempre e agora, como num flashback me volta.
A arte realmente imita a vida. Recentemente, por ocasião das festas natalinas e de um ano novo, cansado do fluir rotineiro dos nossos dias, percorri o centro histórico da velha Oeiras para ver a iluminação de natal. Praça vazia, foi um convite para que eu refletisse um pouco sobre a situação dessa minha gente. Minha gente... ainda de calejados joelhos com as chagas abertas e visíveis pelo eterno autoflagelo. Gente que a pouco estava nas ruas a gritar, a agredir e ser agredido; vilipendiar e ser vilipendiado, odiar e ser odiado; a cantar e gritar palavras vazias de ideologias e de decência tudo em nome do apartheid político social. Uma gente que agora de mãos vazias oferece esse olhar vacilante e estampa no rosto uma baixa estima. Pensei nessa gente, que assistiu no decorrer do ano o evidenciar das mazelas administrativas; que se viu sem uma saúde pública a contento; que viu uma educação sem rumo; a malversação do erário público; o surgir de empresários laranjas e de futuro incerto; que perdeu a paciência com uma cultura estrábica; Um ano onde sucessivos escândalos envergonharam e continuam a envergonhar a todos com gestores incansáveis no saquear, onde perdulários assessores não se envergonham nem se comovem de perder numa noite de jogatina o equivalente ao custo de duas, três ou mais salas de aula. Refleti sobre essa gente que também tem fome dos reais valores, de políticas sociais que enriqueçam e que oportunizem. Políticas que emancipem e que libertem. E uma vez livre, essa gente enterre para sempre esses “lideres” opressores, incapazes de compreendê-la.
Sob a iluminação deslumbrante das luzes de natal, naquela noite, me peguei pensando na gente desse lugar. Então lembrei-me do palhaço triste de minha infância.
*Jota Jota Sousa é escritor e poeta