
Estranho no ninho

Por Rogério Newton
Meses atrás, figurão da burocracia estatal publicou livro em Teresina, cujo lançamento estava repleto de personalidades da vida social e política. Qual a importância disso para a Literatura? Nenhuma. Discursos laudatórios, exibicionismos, aproximações com o poder não convivem pacificamente com a Literatura.
O escritor O. G. Rego de Carvalho sabia dessa verdade. Tinha aguda consciência do seu ofício. Por isso, nunca fez concessões que viessem a prejudicar a qualidade de seus escritos. Avesso a frivolidades, legou-nos obra relativamente pequena, porém de excelência literária.
Penso que seria útil para leitores em geral e aspirantes a escritores em particular refletirem sobre alguns aspectos do ofício que O. G. encarnou com ousadia, sinceridade e competência. Para isso, é fundamental a leitura de Como e Por Que Me Fiz Escritor, texto resultante de palestra proferida por ele no Seminário de Escritores Piauienses, realizado em Teresina, em 1989. Lendo essa “autobiografia intelectual”, pode-se compreender melhor a experiência de vida e a experiência literária e os modos como estão intimamente entrelaçadas.
A decisão de ser escritor brotou em O. G. com nitidez. Ele tinha um propósito claro e definido. Nunca foi um diletante, um amador, que viesse a escrever para dar vazão aos impulsos líricos. Tinha um propósito e não desperdiçou tempo e energia para realizá-lo.
Foi um escritor que investiu na sua preparação. Isto é, leu bons autores, e fez isso reflexivamente. “A leitura é fundamental para o romancista, e fundamental para o poeta”. Não é possível ser escritor sem preparação adequada, sem conhecimento da cultura geral e sem conhecimento do idioma.
O. G. respeitou a tradição de bons autores, mas construiu com originalidade pelo menos dois de seus livros, Ulisses Entre o Amor e a Morte e Rio Subterrâneo. Isso quer dizer que o escritor não deve “copiar” ninguém, por melhor que seja. Também não deve necessariamente concordar com intelectuais e escritores consagrados de seu meio. Ficaram famosas as divergências de O. G. com professores da Faculdade de Direito do Piauí, que pontificavam na cultura local. O escritor deve ter sua independência intelectual e procurar traçar seu próprio caminho. Manter diálogo com a tradição e com escritores do passado é uma coisa, mas ficar intelectualmente dependente e – pior – subserviente à forma de pensar e à visão de mundo de autores do passado é causa de fracasso para o escritor, pois, com essa base, não construirá nada de novo, apenas repetirá o que já é conhecido, inclusive os equívocos.
O esforço e a dedicação de O. G. à literatura vem desmistificar falácia popularmente aceita, segundo a qual o escritor ou poeta faz tudo por inspiração. Nada disso. A literatura é linguagem que exige elaboração. Para escrever bem é preciso esforço. Afirmou O. G. que não escreveu nenhuma palavra de seus livros sem ir ao dicionário. Escreveu intensamente dos 16 aos 19 anos, idade em que teve seu primeiro conto aceito, depois de 30 recusas de jornais e revistas do sul do País, para onde enviava seus escritos a fim serem publicados. Isso também denota a pertinácia e o firme propósito de ser escritor e não desistir nunca.
O. G. era um escritor sincero. Encarnou a máxima dostoiévskiana: para escrever bem, é preciso sofrer. Ou o ensinamento que Horácio dava aos poetas de seu tempo: “Chora tu primeiro, se queres que teu leitor se comova”. Por isso, indagou: “Como quer você, escritor, que o leitor se comova com o que você escreve, se você não chora diante do que você escreve? Se você não sente aquilo que está escrevendo? Como é que você quer que o leitor sinta também?
Ele lamentou que falte à maioria do escritores piauienses a sinceridade de escrever “como se estivesse rasgando o coração”. De minha parte, digo que ela está ausente também na maioria dos aspirantes a escritores oeirenses. Daí as emoções falsificadas que imperam em muitos textos.
O. G. tinha um tratamento cuidadoso com a linguagem. Por isso, a qualidade musical altamente sugestiva. O cuidado com a escritura, porém, não pode desviar-se em empolamento da linguagem, equívoco bastante recorrente em boa parte de textos de aspirantes literários.
Esse cuidado com a escritura, certamente, existe em função de alcançar uma linguagem cada vez mais precisa e sugestiva. Como o próprio O. G. recomendou, em literatura, deve-se sugerir, mais do que dizer, postulado que me leva a classificar os autores em duas categorias: o escritor e o escriba. O escritor sugere mais do que diz; o escriba tenta dizer tudo e esmaga com palavras as entrelinhas, como diria Clarice Lispector.
A aguda consciência crítica de O. G o fez reduzir as duzentas páginas iniciais de Ulisses para apenas cem. O minimalismo proporcionou um livro enxuto, em prosa poética de alto valor, como é exemplo a passagem que narra a morte do pai: “Quente era a manhã, em julho, quando meu pai se deitou, as pálpebras baixando. E puro, e distante, e feliz, encarou o céu e o tempo”.
O. G. é um exemplo não só de estética, mas de ética. Do ponto de vista literário, ele não fez concessões à má escritura e, graças a Deus, não foi um escritor “engajado”. Do ponto de vista ético, é preciso mencionar a honestidade de suas atitudes, como, por exemplo, a motivação de escrever Somos Todos Inocentes. O próprio O. G. explicou: “Eu tinha brigado com todo o mundo em Teresina, defendendo minhas idéias. Na época, eu tinha 26 anos de idade. Jovem que não briga pela suas idéias aos 26 anos é um jovem fracassado, é um velho precoce”.
“E eu fui para o Rio de Janeiro e escrevi um livro com o título Somos Todos Inocentes, que, na verdade, é um sarcasmo. Eu quero dizer que todos somos culpados, mas que atiramos sobre os outros as culpas dos nossos fracassos, dos nossos ressentimentos, das nossas ansiedades. Nós atiramos a culpa nos outros, nós nos julgamos inocentes”.
Mesmo sendo considerado pela crítica o seu livro “mais fraco”, Somos Todos Inocentes é um romance que merece ficar de pé em qualquer estante. Sua importância para Oeiras é enorme. Além da qualidade literária, o livro é uma radiografia “por dentro” da cidade. A decadência do Sobrado e o caráter de personagens como Raul, em última análise, são sintomas de uma sociedade em crise continuada e sinais de colapso civilizatório.
Disse uma vez O. G. que era um “estranho no ninho” em Teresina. Quero crer também que era – e continua sendo – um “estranho no ninho” em Oeiras. Não se afastou um milímetro de sua proposta de construir uma obra de alto valor estético, calcada na verdade humana.