
Ladeira da preguiça

* Por Rogério Newton
Línguas de fogo desceram sobre ruas e becos, como o sopro de um vendaval. Homens e mulheres vieram para fora e olharam, cheios de espanto, o calçamento se revirando, dando lugar às antigas pedras bico-de- jacaré. As labaredas se espalharam, encheram as casas e ressuscitaram antigas habitações de porta, janelas, beirais e tetos de carnaúba, amarrados com couro cru. Não houve vivente humano ou bicho bruto que não recebesse o hálito quente lambendo a pele, tão forte que sacudia e penetrava revolvendo as entranhas.
As ruelas adquiriram estranho brilho. Pareciam ter nascido naquele momento, tal o viço que exalava do pulsar de mil corações batendo de com força. Todos ficaram confusos e passaram a falar em grande alarido, mas havia uma coisa que suplantava a admiração e a perplexidade. Sem saber o que fazer, homens e mulheres juntaram-se às crianças e enfeitaram as ruas com pétalas de flores, em bonitos arranjos, inventados na hora. Tudo dava certo; uma corrente invisível os unia, ninguém sabia o que era, e achavam bom entregar-se sem perguntas.
Músicos da bandinha surgiram do Beco dos Sapateiros. A multidão se misturou a ela, cantando dobrados e marchinhas. Houve quem preferisse ficar pelas calçadas, brincando de mãos dadas, entoando cantigas de roda, com largos sorrisos e acenos de despedida para o desfile que passava. Lembrava procissão. Parecia carnaval. O vento vinha dos morros, impregnado de alecrim; varria qualquer espécie de tédio que pudesse ter sobrevivido às labaredas. De lambuja, refrescava os brincantes e injetava mais alegria.
De repente, alguém falou que no Rosário rolava o maior jazz. Os moradores pegaram dos instrumentos, pois batucada é com eles. Um grupo grande se concentrou no Lajedo do Samba. Como ficava em local mais elevado, fazia com que a cidade lá embaixo ouvisse e se contagiasse. Outros grupos saiam pelo bairro, em animados cordões, com dançarinos ágeis, porta-estandartes sorridentes, batuqueiros incansáveis. Bem mais tarde, amanhecendo o dia, iriam para o Riacho dos Negros, mergulhar nas águas frias, entre as pedras.
Notícias pipocaram de todos os lugares. No Canela, a multidão tomou as ruas, sem camisa, batendo em latas e rudes pandeiros, seguindo as figuras do reisado. Dançavam leseira e roda de São Gonçalo, misturadas a cânticos cristãos. Na Várzea, moradores vestiram branco e foram aos morros próximos, colher arbustos aromáticos que exibiam nas ruas, cantando músicas dos terreiros e hinos pagãos. Em Oeiras Nova e no Jureminha, avenidas redivivas, de areia branca e coqueiros como o mar, exultaram, eletrizadas, repletas de corpos com as marcas das línguas de fogo. Os olhos translúcidos dos riachos derramaram lágrimas, ao verem a multiplicação dos peixes e das árvores.
Não houve ninguém, mesmo recém-nascidos, doentes e velhos, que ficasse parado ante o irresistível chamado. Sem prévia combinação, todos saíram dos bairros, das periferias até então mais sórdidas e esquecidas, e rumaram em grupos cantantes, dançantes e brincantes, na direção do Rosário, lá onde ainda hoje estão o Pé de Deus e a igrejinha de pedra. Caudalosos rios desaguaram no largo em frente, que se transformou em um mar de gente de ondas azuis e espumantes. Parecia Macondo, Comala, São João de Sende, Rio de Janeiro e Jerusalém.
Quando subia a elevação calçada de pedra, tendo à sua frente o ponto onde, todos os dias, nasce o Sol, Maria Cafubila, delirando de contentamento, saciada de consolação, perguntou que ladeira era aquela. A seu lado, Toim de Eduvirgens e Militão, olhos faiscantes, cantaram com voz afinada, apesar de rouca: _ Esta é a ladeira da preguiça!
(Publicado na revista Revestrès #9, julho-agosto/2013))