
Opinião: As fivelas de ouro

Por Carlos Rubem*
Um tal Joaquim Barroso Veras, abastado fazendeiro e vereador da Câmara de Parnaíba, ao tomar conhecimento da ascensão do português João Amorim Pereira no cargo de Governador da Capitânia do Piauí (1797 a 1799), resolveu aplicar sua costumeira e infalível tática: presentear autoridades. Aufereria vantagens depois, naturalmente, pensava. Mandou confeccionar umas fivelas de ouro para sapato. Com ajuda do vigário da paróquia, escreveu uma carta apologética, a qual acompanhou o régio agrado.
De Oeiras, então Capital, o nosso terceiro governador, respondeu-lhe imediatamente, dizendo em certo trecho, o seguinte: “Na carta escrita a 26 de agosto me avisa vmc. remeter-me, como na verdade remete, umas fivelas de ouro, de que fico entregue; e como eu não fiz a vmc. encomendas delas, devo entender que me fez presente das ditas; a este respeito eu responderei em outro lugar a vmc. Agora só me resta recomendar-lhe o cuidado que deve ter na satisfação das suas obrigações, isentá-lo de tudo que não for esse exercício”.
Paralelamente, em ofício dirigido ao Presidente da citada Vila, Caetano da Silva Lopes, o fidalgo mandatário assim se expressou: “Logo que vmc. receber esta minha ordem fará avisar aos vereadores e demais oficiais dessa Câmara, para que se ajuntem no dia e hora que lhe determinar na casa da mesma Câmara, e quando estiverem juntos, vmc. entregará ao vereador Joaquim Barroso Veras as fivelas de ouro que vão nesse embrulho, que deve vmc. abrir, para que se veja e realize a sua entrega, e o repreenderá severa e asperamente do temerário e atrevido arrojo que ele teve de fazer-me semelhante presente atacando por um modo tão escandaloso a minha independência, a minha honra e inteireza, devendo fazer termo da entrega em que o mesmo se assine, e que remeterá para esta secretaria deixando no mesmo senado por cópia nos livros de registros, para que todo tempo conste do atentado daquele, e de meu procedimento, e, finalizando, deixará preso a minha ordem ao mesmo Joaquim Barroso Veras na casa da mesma Câmara e não tendo esta comodidade para ele estar preso, fará buscar uma casa que sirva para esse fim; avisando ao depois a mesma da dita prisão, para que nomeiem outro vereador que deva substituir o seu lugar”.
Alguém pode entender que a atitude do íntegro lusitano tendo sido demasiadamente austera, isolada? Não, não ficou apenas nessa. Há registros similares. Não convém aqui analisar as relações jurídicas daquela época. O que não se pode é deixar de considerá-la elogiável.
Lembrei-me deste fato à luz da avalanche de corrupção que assola o país. Vivemos encharcados com tantas notícias alarmantes!... De quem menos se espera, somos informados de suas tenebrosas transações. Ainda bem que a imprensa está cumprindo o seu verdadeiro papel.
Ora, o alcoólatra compulsivo deve evitar o primeiro gole, senão... Há quem diga que o poder é afrodisíaco. Tentador! Quem desempenha função pública, principalmente, deve ter formação necessária, serenidade bastante, fortaleza moral para evitar o capcioso assédio.
O que vemos atualmente no Brasil – fatos comprovados pela Operação Lava à Jato, por exemplo – é a desavergonhada distribuição de dinheiro, por diversas maneiras, acompanhada de tráfico de influência aos corruptos de plantão. Estes tem o desplante de alegar-se ofendido ante as veementes evidências datadas e assinadas. Sem açodamento, espera-se que estas abjetas pessoas sejam punidas nas iras legais, garantindo-lhes ampla defesa, mas não é admissível que o Poder Judiciário fique receoso de retaliações. Afinal, as provas devem ser honestamente valoradas.
Lições como a que deixou o Governador do Piauí acima citado, deveriam ser algo corriqueiro. Fivelas de ouro estão fora de moda, claro!... Mas, diante das reiteradas práticas imorais vigentes, será que autoridades de mando, nas três esferas administrativas, tem discernimento suficiente para repelir, publicamente, propostas de vantagens indevidas para si ou para outrem?
*Promotor de Justiça