
Opinião: Metáfora e Mitificação

* Por Rogério Newton
Entrevistando Manoel de Barros em 2008, o jornal O Trem Itabirano, perguntou sua opinião sobre os jovens que não se interessam por poesia. Respondeu o poeta: “Eles querem só informação. Não querem metáforas”.
Começo esta crônica com uma metáfora. Se o leitor não gosta delas, pule de página. A metáfora não fui eu que fiz. Não é uma metáfora com palavras. Trata-se do inacabado monumento ao 24 de janeiro de 1823, em Oeiras, considerado, com resistências, a data da Adesão do Piauí à Independência do Brasil. Parafraseando Caetano Veloso, o monumento está (ou esteve) em construção, mas parece ruína. Agora responda, leitor: uma homenagem com ar de escombros a um dos fatos importantes da História do Piauí é ou não é uma metáfora?
Quem leu sobre o fato histórico, sabe, entre outras coisas, que ele sinaliza o triunfo do poder político e econômico exercido no vale do Rio Canindé pelos proprietários de terras, gado e escravos. Sobre a famosa reunião ocorrida na noite de 23 de janeiro de 1823, na casa do Brigadeiro Manuel de Sousa Martins, em Oeiras – conhecida como Casa do Visconde - escreve F. A. Pereira da Costa:
“Este conciliábulo teve lugar à noite, com as cautelas necessárias, entrando cada um dos conjurados um a um, e tudo convenientemente exposto e discutido, teve imediata execução entre as 2 e 4 horas da manhã, sem o mais leve incidente e derramamento de sangue” (Cronologia Histórica do Estado do Piauí, vol 2, Artenova, 1974, p. 287).
Assim relatada, a conspiração está dissociada de acontecimentos violentos que tiveram lugar no Piauí Imperial, logo após a eclosão do movimento separatista. Na época, praticamente todas as províncias estavam conflagradas por causa das lutas internas pela Independência. Houve derramamento de sangue, sim. E muito. Como capital da província e centro de congregação dos interesses dos donos das fazendas-criatórios, Oeiras estava no âmago das disputas. Com a eclosão da Balaiada (1839-1841), violência física e mortes chegaram a níveis altamente perturbadores.
No meio desse amplo processo, emergiu a figura de Manuel de Sousa Martins. A partir de 24 de janeiro de 1823, governou o Piauí durante vinte anos. Os historiadores afirmam que foi um governo despótico, mesmo os que o defendem. De um modo geral, dão a entender que o despotismo foi necessário, ditado pelas circunstâncias, pelo meio e pela época. É uma leitura que absolve a história. Sobre as vinculações com grupos oligárquicos locais, diz a historiadora oeirense Maria Amélia Freitas Mendes de Oliveira:
“No intervalo de tempo que permeia a Independência e os acontecimentos da Balaiada, verifica-se o acúmulo excessivo de poder concentrado nas mãos de uma única família. A campanha emancipacionista congregou os grupos oligárquicos e constituiu-se em excelente oportunidade para a afirmação das grandes famílias proprietárias, a partir de então atreladas ao comando firme e inconteste de Manuel de Sousa Martins, chefe de um numeroso e entrelaçado clã familiar” (A Balaiada no Piauí, Projeto Petrônio Portella, 1985, p.49).
Os idealizadores do monumento ao 24 de janeiro tiveram em mira fortalecer a corrente defensora da data que consideram representativa da Independência do Piauí e realçar a figura de Manuel de Sousa Martins. Tudo isso é muito questionável e excludente de outros fatos e personagens importantes. Sob certa análise, o monumento ao 24 de janeiro é também uma exaltação aos valores oligárquicos - do passado e do presente - encarnados naquela personagem histórica, transformada em herói.
Admitir que tais valores sejam cultuados até hoje por setores conservadores é até compreensível, embora censurável. Mas é muito preocupante ouvir, anos a fio, louvores a uma história que se excede em exaltações aos vencedores. São bem poucos os que se lembram, por exemplo, dos índios trucidados e destituídos de suas terras, “a ferro e fogo”, negros escravizados e mestiços pobres.
Não nego a importância histórica do homenageado. Mas, melhor do que fazer panegíricos a ele e ao 24 de janeiro, talvez seja compreender que existe uma pluralidade de fatos e personagens intimamente ligados à Independência do Piauí, todos fazendo parte de uma realidade complexa, que não se coaduna com análises reducionistas. É preciso considerar outros ângulos de visão, ler as metáforas e retirar dos fatos e das personagens históricas ensinamentos úteis para iluminar o presente.
Como diria Mario de Andrade, o passado é lição pra se meditar, não para reproduzir. Repensando de outra forma o passado, refletindo sobre erros e acertos, aí, sim, a sociedade pode criar outras bases para evoluir e construir um presente melhor. Caro leitor, você está satisfeito com o presente que aí está?
*Rogério Newton é cronista, poeta, escritor e defensor público.