
OPINIÃO: Retocai o céu de anil

* Por Rogério Newton
O que pensariam Tobias Barreto, Cruz e Sousa e Lima Barreto sobre o asfalto que chegou ao bairro Rosário, em Oeiras? Fiz a mim mesmo essa pergunta depois de ler ESTÉTICA DA AGONIA: Tobias Barreto, Cruz e Sousa e Lima Barreto na literatura brasileira logocêntrica dos séculos XIX e XX, artigo escrito por Anelito Oliveira, professor da Universidade Estadual de Montes Claros (MG). Aparentemente, tais escritores nada tem a ver com o Rosário ou com Oeiras, a não ser o fato de terem sido negros.
Acontece, porém (e sempre há um porém), que esses autores tem a ver – e muito! O ponto de partida pode ser a palavra logocêntrico, isto é, centrado no logos, a referência de razão no mundo ocidental. Defende o articulista que tais escritores achavam possível romper com o logocentrismo.
Se o leitor não entendeu nada até aqui, felicito-o por isso e boto mais lenha na fogueira, fazendo outra pergunta (não sei fazer outra coisa): o asfalto é logocêntrico? Ou apenas um produto derivado do petróleo, mero utilitário urbano, sem nenhuma conotação política, estética ou social? Diz-se que é um símbolo do progresso. A cidade que o possui desfruta de modernidade. Superou o atraso, o mundo arcaico.
A coisa não é tão simplista assim. O Prof. Anelito Oliveira afirma que o logos foi colocado no centro das práticas sociais, não por acaso. Faz parte do “projeto filosófico europeu”. Até aí parece distante, mas, segundo o professor, o logocentrismo “é estratégia decisiva para conquista e manutenção dos poderes, um instrumento de dominação”. Isso tem a ver com uma “aceitação da submissão como condição natural de ser e estar nas margens do centro, nas periferias do capitalismo”.
Citando Simone Weil, prossegue o professor: “A bandeja dos muitos pesa menos que a bandeja dos poucos, dos privilegiados na balança social. Então, diz ela, o conceito decisivo para se pensar uma sociedade vem da física, não da sociologia ou da história – é a força. A submissão dos muitos aos poucos se baseia na sua fraqueza, que decorre de entraves reais, práticos: falta de emprego, falta de moradia, problemas de saúde. Entraves articulados, naturalmente, pelos poucos que mais valem na balança social, donos dos poderes, donos do logos, administradores da vida social”.
O Estado – e por conseguinte a vontade dos que pesam mais na balança social - chega às ruas de Oeiras, mais uma vez, com asfalto. Mas não com políticas públicas, centros de criatividade, observatórios astronômicos, escolas de artes e de ciências, museus, arquivos públicos, parques ambientais e de lazer, centros difusores de cultura, arborização e embelezamento de ruas e praças, projetos urbanísticos inteligentes para as áreas onde passam os riachos na cidade e para o Pé de Nosso Senhor, por exemplo. Chega não com um olhar sensível, mas como chegaram a corrosão da vida coletiva, a concretagem dos leitos do Mocha e Pouca vergonha, o “laissez-faire” da expansão urbana, a desfiguração consentida e estimulada da cidade.
Tudo isso não é natural e significa sufocação de vitalidade comunitária, energia selvagem e vital, que precisam ser reduzidas a níveis baixos, para que os “donos dos poderes, donos do logos, administradores da vida social” se acomodem na balança social e a “bandeja dos muitos” pese menos que a “bandeja dos poucos”.
Não tenho dúvida: o asfalto que está sendo colocado em Oeiras faz parte de um pensar-fazer logocêntrico explícito. É menos fator de melhoramento da vida social que instrumento de dominação. Adequar-se a ele equivale, simbolicamente, a sair da periferia, ir para o centro e, estar ao lado da razão triunfante.
O Prof. Anelito Oliveira explica: “há, nas periferias do capitalismo, um desejo incessante de conversão aos centros do capitalismo”. Inicialmente, é um “desejo de acessibilidade”. Depois, um “desejo de reconhecimento”. Finalmente, um “desejo de autorredenção”. Nesse sentido, digo eu, o asfalto em ruas e avenidas de bairros de Oeiras é visto indulgentemente, tanto pelos que estão em maioria numérica na bandeja que pesa menos como pelos que estão em minoria numérica e pesam mais na balança social. Difícil encontrar um pensar e uma prática antilogocêntrica, anti-hegemônica. Os donos dos poderes, os donos do logos, administradores da vida social e religiosa de Oeiras continuam estabelecidos no centro. Difícil encontrar quem resista, estética e politicamente, como Tobias Barreto, Cruz e Souza e Lima Barreto.
O asfalto nos redime?
* Rogério Newton é defensor público