
Crônica: O gato que não deu o salto

*Por Rogério Newton
No final do ano passado, ocorreu um fato que pode ajudar a puxar o fio da meada para algumas reflexões sobre cultura em Oeiras. Trata-se da postagem, no Facebook, de uma imagem em que aparecem, juntas, as bandolinistas Petinha Amorim e Zezé de Cabeceira.
A fotografia emociona por mostrar a paixão de ambas pelo instrumento que virou símbolo da atividade musical em Oeiras. Imediatamente, choveram comentários elogiosos às musicistas, que, sem dúvida, merecem. Como não poderia deixar de ser, surgiram também apreciações ufanistas sobre a “tradição musical oeirense”.
Também me associei aos elogios, mas fiquei a pensar com meus botões. Pior que pensar, escrevi: “A festejada tradição dos bandolins prossegue graças à força e dedicação dos poucos instrumentistas que existem na cidade. A verdade é que Oeiras não possui uma Escola de Música. Estou falando de Escola, não de arranjos improvisados. Essa tradição poderia render frutos mais ousados, inclusive com a recriação da tradição, para dar saltos e produzir música com qualidade de exportação. Como é que pode? A "terra dos músicos" não possui Escola de Música!
Daí fui ver o que restou da Escola de Música Possidônio Queiroz, no prédio onde funcionou, durante anos, a Cadeia Pública. O que vi é a imagem-síntese que vale por mil palavras: o prédio abandonado, o mato tomando de conta e o cadáver de um felino em decomposição no jardim. Será esse quadro também motivo para declarações ufanistas?
Com frequência, ouvimos dizer que Oeiras é berço da cultura piauiense, terra mater do Piauí, cidade histórica de belezas e tradições, terra de músicos, poetas, escritores, homens ilustres, inteligentes e coisas do gênero.
Celebridades que visitam a cidade proclamam seus dotes singulares, como o dramaturgo e escritor Ariano Suassuna, palestrante do I Festival de Cultura, e o cartunista Ziraldo, convidado, neste ano, da FLOR – Feira Literária de Oeiras. Suassuna exultou com a Praça das Vitórias e a igreja de N. S. da Vitória, segundo ele, um exemplar do barroco sertanejo no Brasil. Já Ziraldo afirmou que Oeiras é um dos lugares mais bonitos do Brasil. Disse isso aqui e no programa de Jô Soares para todo o País ver e ouvir.
Não censuro os que tecem loas à cidade. Parte delas ajudam a lembrar que, de fato, temos valor. Mas encerram um perigo. Imaginem uma pessoa que recebe muitos elogios. Ciente da sua autoimportância, torna-se vaidosa, orgulhosa, avessa ao trabalho, ao esforço e à autocrítica. Os enaltecimentos podem vir em auxílio da autoestima, mas estimulam o comodismo e a falsa impressão de que não é preciso mais nada, a não ser desfrutar dos encantos e predicados, olhando de cima para outras cidades que, supostamente, não os tenha.
Essa situação leva fatalmente a uma escolha entre o sofá e o trampolim. Se a opção é pelo sofá, proclamaremos nossas qualidades e potencialidades, deitados no esplêndido berço de nossa cultura sem igual. E continuaremos não passando disso. Se escolhermos o trampolim, a coisa muda radicalmente de figura, pois teremos que nos preparar para dar saltos. Quânticos. Ousados.
Ao invés de repetirmos afirmações grandiloquentes (muitas vezes falsas) da nossa história e da nossa cultura, não seria melhor estudos e pesquisas reveladores e interpretações diferentes da litania laudatória reinante em Oeiras, tão ao gosto de uma vertente de opinião indulgente, inconsequente e ultraconservadora? Ela cria em seu imaginário uma cidade epidérmica, a cidade ornamental, e a apresenta com sua cauda de adjetivos para consumo dos incautos. Não seria melhor uma cidade prospectiva, uma cidade propulsora, uma cidade substantiva?
Temos uma arte que não ultrapassa os limites narcisísticos da província ou uma arte com qualidade de exportação? Em verdade, produzimos pouca literatura, quase nenhum teatro, quase nenhuma dança, quase nenhuma arte plástica, quase nenhum cinema. Uma arquitetura funcional, meramente utilitária, sufocada em linhas retas. E o pouco que fazemos é motivo para delírios de grandeza? Culturalmente, temos potencial, mas o que produzimos é escasso. Uma das razões disso pode estar relacionada com a falta de escolas de arte. Dizemos que somos artistas, queremos ser artistas, mas não temos escolas de arte. No nunca bastante festejado campo da música, um salto para Oeiras seria a criação de um conservatório ou escola de música, um centro difusor do ensino musical não só para a cidade, mas para uma ampla região. Se alguém optar por estudar ou conhecer música em Oeiras, aí poderemos dizer que somos um centro irradiador. Outra razão para o discutível desempenho dos nossos pendores culturais é a ausência de uma política cultural. Sobre isso, poderemos indagar: o Piauí não tem, muito menos o Brasil, por que deveríamos ter?
Para dar saltos a coisa pega e as contradições nos espreitam atrás de cada porta. Somos “terra de músicos”, terra disso e daquilo, mas deixamos a Escola de Música Prof. Possidônio Queiroz apodrecer como um gato que morreu e não deu seu salto.
*Rogério Newton é escritor