
Mais de 60 mil eleitores do Piauí podem ter título cancelado em maio; veja como regularizar
28/04/2025 - 08:43Em todo o país, mais de 5,1 milhão de pessoas ainda precisam regularizar o documento.
Veja na ítegra o discurso de lançamento do livro Crônicas Esquecidas, da autoria de Expedito Rêgo, proferido em 23/10/09 no VI Festival de Culltura de Oeiras, na Casa das Doze Janelas, por Dr. Elmar Carvalho, que gentilmente nos concedeu a honra de publicá-lo neste espaço, para que levássemos aos leitores que não puderam se fazer presentes naquela ocasião, um pouco da emoção daquele momento.
UM PÉRIPLO PELAS CRÔNICAS DE EXPEDITO RÊGO
Elmar Carvalho
A crônica, durante muito tempo, foi considerada um gênero literário menor. Uma espécie de mero artigo de jornal, descartável como o próprio veículo em que era divulgada. Mas, aos poucos, foi ganhando foro de peça literária. Com o surgimento de grandes cronistas, como Machado de Assis, Rubem Braga, Fernando Sabino, para citar apenas três, passou a ocupar lugar de destaque na literatura, em que algumas figuram sempre nas melhores antologias escolares, e servem de paradigma do que melhor existe em termos de texto literário.
Esse tipo de fatura literária versa quase sempre assunto do cotidiano, da realidade, que poderia acontecer a qualquer pessoa e em qualquer lugar. Por vezes vem revestida da melhor prosa poética, em linguagem escorreita e elegante. Outras vezes, toma um aspecto coloquial, despojado, quase como se fora uma conversa despretensiosa, entre amigos. Há crônica que, a propósito de um tema trivial, aproveita o ensejo para fazer incursões eruditas, em tom quase professoral. Poderia mesmo dizer que alguns desses textos, em certos momentos, adquirem o formato de uma espécie de pequeno ensaio, dependendo do propósito e da habilidade do escritor. Como a vida é sempre mais surpreendente do que a própria arte, cheia de acontecimentos inusitados, bizarros mesmo, alguns cheirando a galhofa, outros com pitadas de tragédia grega, muitas crônicas se confundem com o conto, não se podendo dizer ao certo se se trata de uma pequena ficção ou se apenas de uma narrativa verídica. Em várias, o autor destila o seu humor, mais contido, mais sóbrio, à inglesa, ou desbragado, desabrido, quase como uma comédia escancarada e escrachada. Em outras, o autor derrama o seu lirismo, o seu romantismo, como um vate tomado da mais pura emoção e sentimentalidade. Quanto ao tema, a crônica pode tratar de qualquer assunto, inclusive até mesmo, como já tem acontecido, da falta de assunto que atormenta o cronista no momento em que é forçado a escrevê-la, por imposição de seu compromisso com o periódico em que ela deve ser dada à estampa. E foi o que aconteceu com o nosso cronista, porquanto um de seus textos discorre exatamente sobre a falta de assunto, que, aliás, é o seu título. Porém, no seu caso, o texto surgiu não por falta de inspiração, mas sim por livre escolha dessa temática, e que terminou sendo um de seus melhores escritos, por sinal bastante recheado de assunto.
Agora, o que não deve faltar a uma crônica verdadeiramente literária, verdadeiramente obra de arte, é o cultivo da linguagem, o arranjo artístico das palavras, ou seja, o aspecto formal em que o conteúdo deve ser vertido. Não fora assim, qualquer pessoa poderia ser um artista da palavra, pois todo mundo conversa, todo mundo tem assunto, todos têm o que dizer e o que contar. Não basta ter o que contar, há que se saber contar; não basta ter o que dizer, há que se saber dizer. Ou seja, há que existir sempre a ideia de ofício, de trabalho, de saber trabalhar a linguagem, de o conteúdo ser bem casado com a forma.
Lamentavelmente, nestes tempos de tanto barulho musical, de dança da garrafa, de eguinha pocotó, pocotó, pocotó, de tanta poluição audiovisual, de internet que aceita tudo, porque tudo pode ser despejado na grande rede, já poucos procuram a reflexão, a meditação, o monólogo, o diálogo consigo mesmo. Poucos se dedicam à leitura, sobretudo à leitura dos clássicos, dos grandes mestres da palavra escrita. Entretanto, todos podem ter o seu próprio blog ou site, ou mesmo ter acesso a blogs ou sites não seletivos; todos podem derramar os seus textos na grande rede, mesmo que não tenham o que dizer, ainda que não tenham o que contar, e, o que é pior, ainda que não saibam a arte de bem escrever. Percebo, nos mares internéticos, uma tendência para textos de auto ajuda, excessivamente apelativos para a sentimentalidade do leitor, para as fraquezas de uma época de muito desamparo e desesperança e quase exigindo, através de uma espécie de chantagem emocional ou religiosa, que o leitor repasse o texto, na formação de verdadeira “corrente” de envios e reenvios.
Algumas pretensas crônicas não passam mesmo, pela falta de tratamento literário, de artigo sensaborão, a comentar notícias do momento ou bobagens, de maneira superficial e canhestra. Não haverão de sobreviver, e certamente irão para a lixeira virtual do computador ou para a lixeira real da cesta de lixo concreta. Ainda outros artefatos escritos não são contos nem crônicas, mas incipientes narrativas de casos anedóticos, folclóricos, jocosos, ou mesmo trágicos, mas que não se sustentam como peça literária, por não terem traquejo redacional, por não terem os personagens bem delineados, sobretudo psicologicamente, e sem a devida construção do suspense que atrai a atenção do leitor até o desfecho.
Fiz esse arrazoado para dizer que o nosso Expedito Rêgo é um hábil cronista.
E o é porque sabia dizer e porque sabia contar e narrar. Tinha o domínio das frases. Sabia construí-las com clareza, graça e simplicidade. Além do mais, tinha a correção gramatical, que sem gramatiquice, sempre deve existir, exceto nas licenças literárias e poéticas, quando o próprio contexto e o desiderato do artista o exigem.
As suas crônicas não são simples croniquetas do dia a dia, mas revelam um observador atento, que percebia certas sutilezas, e as descrevia com criatividade e graça. Via o que muitos jamais veriam. Percebia o que às vezes apenas um cego percebe, pelo aguçamento dos demais sentidos, e até mesmo do sexto ou sétimo sentido, ou ainda do não sentido, mas apenas intuído.
Como médico e como romancista de escol, sabia perscrutar os escaninhos da alma humana, os recantos mais esconsos do espírito. Por isso os seus textos são permeados de humanidade, de compreensão humana, em que as fraquezas e as misérias do homem podem ser abordadas, mas sem escárnios e zombarias. Entretanto, alguns não são desprovidos de sutil e leve ironia, mas sempre de maneira sóbria, sem nada de grotesco.
Na concepção de várias crônicas, foram utilizadas a sua experiência de vida e muitos fatos foram hauridos de sua profissão de médico, pois algumas são trechos de sua memória, e narram fatos interessantes, pitorescos e de valor histórico. Posso dizer, sem medo de errar, que muitos desses textos têm agradável sabor de conto, porquanto são narrativas prazerosas. Outros, conquanto sem pedantismo e sem arroto de erudição, terminam por revelar o seu longo e aproximado convívio com os livros, sobretudo os clássicos da literatura. Num deles o mestre tem a humildade de revelar que não conseguiu ler algumas dessas consideradas grandes obras, embora o tentasse com afinco. Termin ava o seu pensamento divagando, o que lhe impossibilitava concentrar a atenção no que estava lendo. Certamente todos nós já tivemos grandes obras, que, por um motivo ou por outro, não conseguiram nos agarrar a atenção. Mesmo quando sua crônica toma mais o aspecto de artigo é sempre de leitura agradável e amena, porquanto a sua inteligência, senso de observação, perspicácia e habilidade em redigir transmitem-lhe o devido valor de obra de arte. Para resumir, diria que as crônicas de Expedito Rêgo reúnem as qualidades de uma boa crônica, a que fiz referência em minhas palavras iniciais.
Crônica, em sua própria etimologia, tem tudo a ver com o tempo. Nesse sentido, Expedito Rêgo foi um exímio cronista, pois vários textos, além dos que dizem respeito a suas lembranças pessoais, evocativas, tratam da memória de Oeiras, de seu aspecto arquitetônico, urbanístico, pai sagístico, de certos fatos pitorescos, da origem de certos nomes de ruas, que se revestem, alguns, de caráter anedótico. Faz ressurgir a lembrança de velhos médicos, que haviam injustamente imergido no mar do esquecimento. Restaura fatos históricos de seu tempo e outros mais antigos, que atrairão o interesse de historiadores.
Como já sublinhei, algumas crônicas foram extraídas de fatos corriqueiros, de episódios do cotidiano, de alguma leitura ou conversa circunstancial, e até mesmo desencadeadas por notícias de jornal ou televisão, enquanto outras emergiram das lembranças de sua vida, e têm caráter nitidamente autobiográfico. Contudo, as crônicas de viés memorialístico não foram concebidas para exaltação de sua própria pessoa, não gravitam em torno de seu umbigo, nem são repassadas de bazófias e empáfias de pretensas nobiliarquias e blasonarias genealógicas, mesmo porque Expedito Rêgo sempre foi um homem humilde, contido, sóbrio. Ao contrário, suas crônicas memorialísticas são saborosas, em que o escritor colheu o ensejo para narrar acontecimentos engraçados, episódios pitorescos de sua infância, tenha sido ele protagonista ou não. Algumas, podem ser de interesse dos historiadores, seja por versar fatos da história recente, seja por revelar aspectos que bem poderiam servir à história do cotidiano, porquanto mostram costumes, certo modo de vida e até mesmo brincadeiras e folguedos que já não subsistem, numa época triste que idolatra a televisão, o computador e demais parafernálias tecnológicas, mormente audiovisuais.
Muitos de seus textos buscam o sentido da existência da vida, a razão maior do ser enquanto ser, na angústia que todos temos em buscar a finalidade da vida e de nossa própria existência. Abordam aspecto filosóficos da vida e mesmo teológicos, em sua busca constante de Deus, embora Expedito se considerasse agnóstico. Sobre esse seu posicionamento, assim me pronunciei por ocasião de sua morte:
“(...) embora não tivesse Fé, tinha Esperança, e era bom, e era justo e digno e íntegro. Inclusive, na meteórica incursão na política, muitos anos atrás, por insistência de Balduíno, que desejava vê-lo prefeito de Oeiras. A seriedade de Dr. Expedito pôs tudo a perder, porquanto não sabia mentir e muito menos fazer falsas promessas, que muitos políticos fazem, sem a mínima intenção de cumpri-las. Muitos são bons e caridosos porque acreditam numa recompensa numa outra vida ou numa outra dimensão ou reencarnação. Dr. Expedito, não. Era bom porque era bom e não poderia ser mau. Médico caridoso, por simples índole, sem interesse outro, dizem que muitas vezes atendia pessoas humildes, sem nenhuma remuneração e recompensa, e, às vezes, em face da miséria absoluta, deixava sua camisa externa para envolver o recém-nascido, deixando ainda algum dinheiro para a compra de medicamentos.
Não obstante agnóstico, fez o hino à Catedral de N. Sra. da Vitória e alguns poemas de caráter religioso, num deles retratando a procissão do Senhor dos Passos, com imagens muito vivas, em que são ressaltados o estandarte purpurino de Roma e a coroa de espinhos, que maceravam corações. Isso bem revela o respeito que tinha pelas coisas sagradas e pela religiosidade do povo.
Morreu após longo e atribulado sofrimento. Morreu reconciliado com o Deus de sua infância, reconvertido que foi ao Catolicismo. Morreu com Fé e Esperança, no regaço de Deus, que afinal nunca abandonara, pois quem foi bom, justo e caridoso, nunca deixou de tê-Lo em seu coração, malgrado por anos não O tenha percebido, conquanto Dele estivesse tão próximo.”
Em suas crônicas, repontam, em muitos momentos, a sua própria vida, suas memórias, sua experiência humana, seu labor de esculápio desses sertões, desse agreste tão agre, tão agressivo, tão adusto, mas sobretudo nelas percebemos o talento de um mestre da crônica, a esgrimir as palavras e os diferentes temas com habilidade, beleza e conteúdo, com a destreza de quem tinha o que dizer e sabia dizer, de quem tinha o que contar e sabia contar.