Enfim, a merda!
*POR ROGÉRIO NEWTON
Estava em Belém na última quarta-feira (agora estou em Teresina), quando recebi, pelo zap, uma notícia proveniente de Oeiras de que o Riacho Mocha estava cheio de merda, no trecho da famigerada galeria-esgoto, próxima à mais antiga ponte do Piauí, a Zacarias de Goes, tombada pela Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, em 1939.
Lida em meio a tantos discursos (verbais e não-verbais) da COP30, a notícia foi um terrível paradoxo para mim, mas logo me refiz, porque a realidade é isso mesmo e porque veio em meu socorro um pedaço de verso de Fernando Pessoa, que atravessou minha cabeça: a verdade é paradoxal.
Segundo as informações, ainda não confirmadas, houve um problema no funcionamento da bomba que suga uma parte da sujeira dos esgotos e a carrega para a “lagoa de decantação”, batizada pelo povão de “lagoa da merda”. Quem pagou o pato por esse problema, supostamente técnico, foi o Riacho Mocha, em cujas margens a cidade nasceu, por haver ali “água abundante o ano inteiro”, segundo palavras do médico escocês George Gardner, que veio ao Brasil no século XIX para conhecer espécies botânicas e levar amostras consigo.
Mas o problema não é técnico. A merda no Riacho Mocha é sintoma de colapso civilizatório. Não se trata de acidente de percurso. Desde a chegada da primeira caravela, da cruz e da espada, foi instituída entre nós um projeto de sociedade desenvolvido para a morte de rios, lagoas, florestas, fauna, flora, sem a qual o sistema não se põe em pé para construir a civilização que temos hoje, atualizada pelos paradigmas modernos que produzem a riqueza material, mas também desigualdades, rapinagem, exploração, formação das classes sociais, pobreza e miséria de muitos e fausto de poucos, morte em massa, escravização e violência de todo tipo, especialmente contra indígenas, negros, mulheres e populações vulneráveis.
A modernidade, que muitos dizem ter início no século XVI, produziu e produz avanços materiais, entre os quais, científicos e tecnológicos, mas alto é o preço que pagamos, pois o progresso material é acompanhado por desagregação da sociedade e infelicidade de muitos. Por isso, Oswald de Andrade afirmou no Manifesto Antropófago: “Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade”.
Pelo que vi na COP30, o mais importante não ocorreu nela, mas na chamada agenda paralela. Por quê? Porque lá os corpos e as ideias estavam mais livres para dizerem em alto e bom som que o problema ambiental no mundo inteiro é, antes de tudo, ético, econômico e político. Mais ainda: uma questão mental, pois a civilização predatória não se constrói sem, digamos, teorias, as tais ideias, os tais fundamentos, introjetados de forma velada ou com a força bruta.
E agora, Mané?
Voltemos à merda no Riacho Mocha. É necessário repetir essa palavra muitas vezes. Ninguém quer viver na merda, mas uma lei não escrita estabelece que devemos lançá-la no riacho. A única coisa que incomoda é o fedor. Se este é escondido ou carregado para longe, o problema está resolvido e assim podemos continuar a vida sem alarde, contribuindo, cada um com sua parte, para “o nosso belo quadro social”.
Ao me deparar com discursos, ideias avançadas e “soluções” sobre crise climática, meio ambiente, natureza e governança, muitas vezes fico imaginando quão distantes de tudo isso estão minha cidade e muitos municípios do Piauí e do Brasil. Daí outro paradoxo: a riqueza e muitas vezes o requinte das discussões globais parece que não chegam (ou se chegam não são consideradas) a Oeiras e a outros municípios, que não fazem o bê-á-bá da boa governança ambiental, não têm o básico do básico, por exemplo, uma simples e barata política pública de meio ambiente.
Perdoem o lugar comum, mas em termos simples, para Oeiras e municípios Brasil a dentro, nunca foi tão urgente pensar globalmente e agir localmente, aqui e agora, pois o fedor da merda chegou e não vai sair assim tão fácil das nossas fuças.
*Rogério Newton é escritor
Foto retirada do livro dez Poemas Desesperados Sobre o Riacho Mocha (2025), com selos editoriais da Casa Célis, AMO e Associação Cultural Rua das Portas Verdes
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