Espelho
* POr Flávio Guedes
Chegou em casa ao amanhecer, após uma noite repleta de excessos. Deparou-se com o silêncio da própria solidão. Tudo no seu devido lugar, como deixara algumas horas antes. Aquela mesmice tornava a sua volta insuportável.
Seguiu para o quarto, a cama continuava intacta. Foram-se as esperanças de que os lençóis amanhecessem amarrotados, melados de gozo. Até encontrara com quem desarrumar a cama, mas infelizmente possuía um coração que como todo coração, muitas vezes é burro. Queria ser mais pragmático, mas não era. Subjetivava-se.
De fronte ao espelho, viu nos próprios olhos tudo o que não desejara ser. A decadência lhe era nítida: olhos embriagados, o rosto pálido, a boca seca, as rugas profundas que lhe davam um aspecto dez anos mais velho. Acendeu um cigarro, tirou um trago e soprou na própria imagem como a querer desfazer o que não suportava enxergar. Mas vieram-lhe as lembranças dessa noite. Mais uma das tantas em que terminara só, triste, fracassado. Por que todo mundo podia ser feliz menos ele? Por que tantos têm uma segunda chance mas ele não tivera? Sabia dos erros que cometera, admitia-os, para sim e para... Não. Ele não queria lembrar. Era por demais, doloroso. Mas quanto mais se esforçava por esquecer, mais presente se fazia as suas lembranças. O seu amor. Por que saía certo de se entregar a alguém mas sempre acabava voltando solitário pra casa?
E lembrou daquele senhor deitado na calçada do mercado central, com uma perna já amputada, numa aparência de uns sessenta anos, quando devia ter bem menos. Não seriam os problemas dele bem maiores? Não seria sua vida mais dolorida? Não teria ele mais razões para ser infeliz? Mas era ele próprio que se sentia a mais desprezível criatura, até mesmo por se sentir assim.
Deu um último trago no cigarro, baixou a cabeça e se entregou às lágrimas.
O Sol já começava a aquecer a manhã e o sono ainda não lhe fora misericordioso. Lembrou de seus comprimidos para dormir, pegou-os, sentou-se na cama, caetaneou os versos “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é” e engoliu todos os comprimidos que restavam no frasco. Deitou-se calmamente, sentiu uma lágrima deslizar ainda pelo canto do olho e seus lábios deram um último sorriso. O único em muitos meses. O último de sua breve vida.
* Flávio Guedes é ator, dramaturgo, diretor e cineasta