
Falando de amor

Por Carlos Rubem*
Foi em 1968 – “O ano que não terminou” – nas comemorações alusivas ao jubileu sacerdotal de Dom Edilberto Dinkelborg, Bispo de Oeiras, que vi, pela vez primeira, a Senhora Petronila do Rego Amorim, a querida Dona Petinha, sob a regência do Professor Possidônio Queiroz, executar peças musicais. Criou seus dentes em ambiente artístico. Seu pai, João Rego, era pianista e sua mãe, Hilda, violinista. Inúmeras famílias de Oeiras, em épocas recuadas, eram formadas de músicos, apesar do insulamento em que vivia aquela “que foi, com muita pompa e majestade, / Rainha dos sertões no tempo do reinado...” (Nogueira Tapety).
Minto! Antes, já a tinha visto tocando harmônio da Igreja da Conceição em missas e ofícios à Imaculada. Ainda ressoam em meus ouvidos os sons daquele velho instrumento entrecortados com a voz efeminada do insuperável Zé de Helena: “Agora lábios meus / dizei e anunciai / os grandes louvores / da Virgem Mãe de Deus...”
Ainda em criança, na cola do tio Gerson Campos, poeta, fui à residência daquela musicista, pois ele foi visitar seu amigo e filho dela, João Euclídes, então, estudante de medicina, no Recife, que aqui se encontrava em período de férias. Boêmio irresistível, com seu vozeirão aveludado, tio Gerson passou a cantar sucessos de antanho, acompanhado pelo violão do referido universitário e pela sanfona de Dona Petinha. Zeca Amorim, seu esposo – que já não mais tocava violão – conversou muito com o meu inesquecível parente sobre as noitadas que ambos vivenciaram, entre bebidas e mulheres, na capital pernambucana.
Dela me aproximei mais, quando me tornei seu aluno da matéria “Canto Orfeônico”, no Colégio Estadual de Oeiras (hoje Unidade Escolar “Farmacêutico João Carvalho”), quando fazia o curso ginasial, no início dos anos setenta. Neste mesmo período, a vi, várias vezes, participando das sessões do Instituto Histórico de Oeiras, recém criado, do qual fora um dos fundadores deste já anoso sodalício.
Durante a preparação das festividades relativas aos 250 anos da Igreja Matriz de N. S. da Vitória – primeiro templo regular do Piauí – em 1983, algumas musicistas locais se reuniram para executar um repertório próprio, sob a coordenação da Professora Celina Martins. Formou-se, desde então, o grupo Bandolins de Oeiras, constituído pelas senhoras Lilásia Freitas, Petinha Amorim, Zezé Ferreira, Rosário Lemos e Nieta Maranhão, que vem (vinha) se apresentando com regularidade nas missas solenes, festas cívicas, sociais, nesta cidade e circunvizinhança. Fazem questão de tocar composições do conterrâneo Possidônio Queiroz, autodidata, cuja obra musical foi resgatada atrav´s do CD Valsas Piauienses.
Sob os auspícios da FUNDAC, em 2000, o grupo Bandolins de Oeiras gravou um único CD, de igual nome, que foi bem acolhido pelo público, e há muito tempo esgotado. A partir deste produto cultural, As Meninas – como também são conhecidas – na fase melhor de suas vidas, a terceira idade, ganharam mais visibilidade, bem expressam o patrimônio vivo do nosso povo.
Participaram do I Festival Internacional de Cultura das Três Fronteiras, em junho de 2004, nas cidades de Puerto Igarazú e Posadas, Argentina; Festival Interartes da Serra da Capivara, setembro de 2004, em São Raimundo Nonato; e, em 2005, nos meses de janeiro e julho, respectivamente, marcaram presença no Festival Viva Arte de Fortaleza e Festival de Cultura de Viçosa do Ceará. Dignatárias da comenda “Ordem do Mérito Cultural”, outorgada pelo Presidente Lula, no dia 08 de novembro de 2005, em solenidade no Palácio do Planalto, oportunidade em que executaram o Hino Nacional. Em 2008, a convite do Sebrae/PI, estiveram abrilhantaram a abertura da feira de negócios “Piauí Sampa”, ocasião em que foram entrevistadas no "Programa do Jô".
Muito ligado as cousas caras à minha terra natal, tornei-me uma espécie de produtor cultural do aludido quinteto. É muito gratificante estar em companhia de tais matronas em suas primorosas apresentações artísticas. Poderia relembrar inúmeros fatos interessantes relacionados a todas elas. No entanto, como estamos todos nós oeirenses (ou não!) nos movimentando para expressar o nosso regozijo pelo transcurso do 90º aniversário de Dona Petinha (10/11/2011), abaixo, vou relatar quatro episódios protagonizado por mim e a graciosa anciã.
Pois bem! Quando fizemos a inaugural viagem aérea, com destino a Brasília, em 2004, acomodada em seu respectivo assento, e após observar a aeromoça dar as informações de segurança de praxe, sem saber colocar o sinto no seu devido lugar, Dona Petinha, muito nervosa, abriu o bico bem alto: “Bill, onde boto esta correia?”. Os passageiros caíram na gargalhada...
No festival das “Três Fronteiras” acima indicado, além de Tom Chico (contra-baixo) e Josué Ferreira (violão), acompanharam As Meninas os exímios violonistas Geraldo Brito e Anderson Nóbrega, de Teresina. Em Puerto Iguazú, ficamos hospedados num hotel paradisíaco. Muita eufórica, Dona Petinha, como que querendo aproveitar ao máximo a pegada dos instrumentistas citados, toda hora empunhava seu bandolim para tocar. GB, muito dorminhoco, não dava a devida canja. Então, lá eu ia pedir ao Anderson, sempre muito solícito, que satisfizesse o desejo dela. Trocavam figurinhas. Dona Petinha, quando se dirigia ao jovem violonista, só o chamava de Zeca. Zeca pra cá, Zeca pra lá! De tanto repetir o nome do seu falecido esposo (Freud explica!), a sua colega, Zezé Cabeceira, enfatizou: “Petinha, parece que você está ‘enceguerada’ por este rapaz!”.
Quando as bandolineiras (neologismo surgido da aglutinação das palavras bandolins e o toponímico local) se dirigiam para fazer uma apresentação privê no monumental Hotel Sheraton – tendo ao fundo, as famosas Cataratas do Iguassu – para as autoridades culturais da Argentina, Paraguai e Brasil, Dona Petinha, de braços dados comigo, com a devida cerimônia, consultou-me: “Posso beijar o Sr. Ministro Gilberto Gil?”. "Conquanto que seja na boca", redargui. Ela sorriu à beça. O certo é que ambos se cumprimentaram efusivamente, e muito lamentei porque não apanhei esta cena através da minha indiscreta máquina fotográfica.
Doutra sorte, em Posadas (Argentina), depois de um lauto almoço com os demais artistas que participavam daquele concorrido festival, fomos para o hotel fazer a sesta. Quando lá chegamos, fui logo avisando: vão todas descansar e estejam prontas às 19h. Mal nos recolhemos, escutou-se uma forte pancada, por volta das 14h. Dona Lilásia, com muita dose de ansiedade, resolveu tomar banho sem contar com a ajuda da sua filha Tereca. Resultado: escorregou-se na banheira chocando sua cabeça contra a parede, o que lhe causou enorme “galo”. Fui o primeiro a chegar em seus aposentos. As Meninas, vestidas em seus robes, também vieram. Depois chegaram os músicos. Criou-se um alvoroço, no início. Tranquilizei a todas, pois não tinha sido nada grave, arrisquei. Arranjei gelo, foram ministrados remédios. Mas Dona Lilásia se lamuriava... Dizia que não deveria ter ido, que já estava velha demais, que só dava trabalho aos outros. Neste momento, propus ao grupo que fosse feito um ensaio musical. Peguei os sujeitos tão estimados (é assim como elas chamam os seus bandolins, pois, de fato, não se tratam de objeto). E a brincadeira começou... Em dado instante, pedi-lhes que tocasse a música “Falando de amor”. Elas não a conheciam. Se queixaram que só gostam de executar qualquer peça quando está transcrita em linguagem musical. O Geraldo Brito não se fez de rogado... Peguei a partitura há pouco rabiscada e desci elevador abaixo visando fotocopiá-la. Para logo, ouvia-se esta inebriante canção de autoria do Tom Jobim, inclusive através da batida inconfundível de Dona Lilásia. Num amplo teatro, os Bandolins de Oeiras se desincumbiram muito bem naquela noite. A imprensa platina cobriu a efeméride. Fizeram no maior sucesso. Deram até autógrafo!
Quando o grupo retornou a Oeiras, no sábado vindouro, mesmo porque já estava programado, As Meninas fizeram uma apresentação no BNB Club durante um evento maçônico. No repertório, “Falando de Amor”, última música executada.
Encerrada a performance, observei que Dona Petinha, gesticulando, me chamava. Abaixei-me para ouvi-la. Ela, então, confidenciou-me: “Toquei esta música pensando em você!”
Sem comentários!...
Falando de amor
Tom Jobim
Se eu pudesse por um dia
Esse amor, essa alegria
Eu te juro, te daria
Se pudesse esse amor todo dia
Chega perto, vem sem medo
Chega mais meu coração
Vem ouvir esse segredo
Escondido num choro canção
Se soubesses como eu gosto
Do teu cheiro, teu jeito de flor
Não negavas um beijinho
A quem anda perdido de amor
Chora flauta, chora pinho
Choro eu o teu cantor
Chora manso, bem baixinho
Nesse choro falando de amor
Quando passas, tão bonita
Nessa rua banhada de sol
Minha alma segue aflita
E eu me esqueço até do futebol
Vem depressa, vem sem medo
Foi pra ti meu coração
Que eu guardei esse segredo
Escondido num choro canção
Lá no fundo do meu coração
*Promotor de Justiça