
Flores e Pedras

*Por Rogério Newton
Antes de sairmos de casa para a manifestação no Centro de Teresina, meus filhos brincaram: “Mãe, deixa-nos fazer revolução!” Após atravessarmos a ponte, um carro passou veloz. Alguém gritou: “Procurar o que fazer!” Na Avenida Frei Serafim, um prazer tomou conta: caminhávamos num território ordinariamente dominado por veículos. Naquele momento, era restituído aos humanos.
Revendedoras retiraram os automóveis dos pátios, temendo depredações. Aí, bateu a primeira conclusão: o medo entrincheirado. Prosseguimos, contagiados pelo leve caminhar das pessoas que seguiam conosco em direção à Igreja São Benedito, quase todas jovens, muitas portando cartazes com protestos ou ditos engraçados. O sol aquecia nossos anseios e faiscava nas extremidades pontiagudas das grades do Quartel do Exército. Uma moça carregava flores para distribuir aos manifestantes.
Em frente ao Colégio das Irmãs, um dedo de prosa com dois conhecidos: um deles afirmava que era preciso tomar cuidado para a direita não usar o movimento a seu favor. Seguiu-se um papo-cabeça, em cima do asfalto quente. Nos despedimos com sorrisos, pelas circunstâncias e pelo prazer do reencontro. No adro da São Benedito, a multidão estava mais frenética, mas nada exagerado, nem os bonecos gigantes contra a PEC-27. De lá de cima, vimos muita gente em frente ao Karnak. Lembrava carnaval, parecia procissão.
Foi ali que vi a única faixa identificando um partido político. Reconheci vagamente uma das pessoas que a seguravam. Estava forçando a barra, estava tensa. Grupos de jovens, alguns abraçados, cantavam ou diziam palavras de ordem. De repente, senti que todas aquelas pessoas eram sinceras e desejavam uma cidade e um país melhores. Quando chegamos à Praça Pedro II e entramos na Rua David Caldas, não me contive e chorei.
Andamos pelas ruas ao lado de gente como nós, caminhando e cantando, tranquilos, sem espantos. Na porta das lojas fechadas, empregados do comércio olhavam para nós, aquiescentes. Um grupo de moças de uma ótica, uniformizadas, sorria. Ao chegarmos à Prefeitura, alguém discursava perto de um carro de som, mas não entendíamos nada do que falava. O clima era diferente do que até então havíamos visto. Alguém falou, ou fui eu que pensei, em radicais.
Voltamos. Uma farmácia, aberta na Rua Coelho Rodrigues, sem nenhum segurança. No percurso de retorno à Igreja São Benedito, já não havia mais tanta gente nas ruas, o movimento se esvaziava. Ao passarmos em frente a uma carrocinha de cachorro-quente, alguém gritou para uma repórter: “Ônibus depredados na Avenida Maranhão!” Na Frei Serafim, agora com menos pessoas, encontramos amigos e seguimos. Quando caminhávamos sobre a ponte, sirenes de carros de polícia nos assustaram, passando velozes na direção da Avenida João XXIII. Em frente ao shopping, manifestantes pararam um ônibus. Um grupo de homens, dois deles com rosto encoberto, os olhos não, carregavam o que parecia o teto metálico de um dos quiosques da margem do Rio Poty.
Era hora de ir embora. Na Avenida Raul Lopes, encontramos grupos de jovens, com cartazes, caminhando rumo à ponte. Alguém recebeu uma ligação no celular: a situação na Frei Serafim estava esquentando, uma passeata com gente gritando.
Voltamos a pé para casa. A TV mostrava a fumaça das bombas de gás, a multidão tentando invadir o Palácio do Itamaraty, em Brasília. Em outras cidades, as imagens eram parecidas. Os apresentadores de TV se deliciavam com críticas aos vândalos. Depois de tomar banho, comi e deitei na rede. Dormi, como uma pedra, feita da mesma matéria das que estão no meio do caminho.
*Rogério Newton é defensor público, poeta e escritor.