A profundidade da dor e a superficialidade da exposição
31/03/2024 - 18:01Espalhar fotos e vÃdeos de vÃtimas fatais de acidentes constitui um ato criminoso.
Costumo situar em 1971 o início da primeira atitude da sociedade civil em defesa do Riacho Mocha. Naquele ano, o Prof. Possidônio Queiroz e o poeta e magistrado Gaudêncio Carvalho bateram às portas do prefeito de Oeiras, reivindicando providências para o saneamento, recuperação das margens e conservação do riacho. Ainda na década de 70, o engenheiro agrônomo Luiz Gonzaga Carneiro foi outra voz que se levantou com argumentos esclarecedores. Mas existe uma petição assinada por B. Reis e outros cidadãos, datada de 1949, solicitando atuação da Câmara Municipal a respeito de águas empoçadas nos meses de verão. Não havia um viés conservacionista. A preocupação do texto era com a saúde pública. Por isso, tenho o ato de Possidônio e Gaudêncio como marco inicial.
Desde aquele tempo até hoje, a sociedade civil nunca deixou de clamar pela proteção do riacho. Em 1984, estudantes dos grupos Mafrense e Ipê organizaram ato público na escadaria do Passeio Leônidas Melo. Em 1985, o Mafrense organizou a Semana Nacional do Meio Ambiente, cujo tema principal foi o Mocha. Em 2007, houve o Fórum Sócioambiental. Em 2013, a Associação Ambiental de Oeiras lançou o documentário em vídeo O Rio de Minha Aldeia, relatando como aquele córrego, que fornecia água abundante o ano inteiro, transformou-se em esgoto no trecho citadino e em grito de luta de pessoas do povo, estudantes, educadores, escritores e poetas.
Em todo esse período de quase meio século, qual foi a receptividade das gestões públicas ante as reivindicações da sociedade civil e recomendações ambientais? A julgar pela qualidade das poucas intervenções feitas no Mocha, estas não tiveram nenhuma consideração para com as manifestações dos cidadãos e de quem se dedicou a refletir sobre o assunto. Quase sempre, as alternativas apresentadas pelas gestões públicas foram de grandes projetos. Propostas simples e baratas sempre ficaram fora de cogitação.
Por isso, não foi com surpresa que representantes de entidades civis oeirenses (AMO, IHO e Sub-secção da OAB-PI), presentes à reunião da última segunda-feira no auditório do Ministério Público, em Teresina, receberam a notícia do mais recente megaprojeto sobre o Mocha. O espanto aumentou ao sabermos que o projeto está pronto, sem ter havido nenhuma consulta ou discussão com a sociedade. Os representantes estatais convidados para a reunião pouco revelaram, o que frustrou os membros das entidades civis.
Apesar da escassez de informes, foi possível saber que trata-se de “macrodrenagem do Município de Oeiras” e “revitalização” do Riacho Mocha, projeto a ser executado pela Secretaria de Infraestrutura do Estado do Piauí (SEINFRA). A obra vai custar R$ 12 milhões.
Um impasse foi criado logo no início da reunião porque, a exceção dos representantes estatais, ninguém ali conhecia o teor do projeto e o estudo de impacto ambiental, nem mesmo o Ministério Público, que já os havia requisitado e, até o dia da reunião, não havia sido atendido. Mas ficou deliberado que a SEINFRA e a SEMAR providenciarão cópias. Só depois disso é que nós outros poderemos falar alguma coisa a respeito. Mas isso, aparentemente, pouco altera os fatos, pois a obra já foi contratada e a Ordem de Serviço assinada pelo Governador do Estado.
Seja como for, haverá uma “audiência técnica” no dia 24 de abril e uma audiência pública em Oeiras, em data a ser agendada. Sem desprezar a possível relevância de ambas, é pouco provável que isso também mude alguma coisa: tudo ou quase tudo está decidido e sacramentado (pelo menos na ótica dos mentores do projeto). Então vamos discutir o quê? Mesmo assim, não podemos deixar de elogiar a iniciativa do Ministério Público. O resultado mais positivo foi proporcionar debate sobre o tema. É o mínimo, mas já é grande coisa. Quem sabe possamos evoluir para um quadro melhor.
Durante a reunião, que se deu com total liberdade aos presentes para se manifestarem, ouviu-se, vez em quando, expressões como “revitalização” e “perenização”. Mas a forma como isso se dará é uma incógnita. Se, de fato, vier a ocorrer, por enquanto, é do conhecimento apenas dos mentores e autores do projeto.
Outra preocupação das entidades civis é de se repetirem equívocos de intervenções no Riacho Mocha ocorridas em tempos passados, como a galeria construída entre a Ponte Grande e a ponte da Várzea, no final da década de 1980. O grande fracasso do projeto de revitalização do ano 2000, que previa plantio de 5 mil árvores (que não foram plantadas) e construção de estação de tratamento de esgoto (que não foi feita), também foi relembrado. Foi um projeto muito menor do que o atual. Aparentemente, seguiu os trâmites legais, foi discutido em audiência pública, mas sua execução não representou nenhuma melhoria para o ecossistema do riacho. A pura e simples existência de projeto não garante, por si só, benefícios ambientais ao riacho.
Afirmação bastante questionável é de que o Riacho Mocha está morto e que isso justifica qualquer intervenção. Embora esteja bastante degradado no trecho citadino, o Mocha não está morto. Fora da área urbana, o riacho ainda possui razoável cobertura vegetal de suas margens. Quando o inverno é de boas chuvas, a água volta a correr, mesmo se por poucas horas. O riacho recebe pequenos afluentes. Faz parte de uma bacia hidrográfica maior.
Os representantes dos órgãos estatais convidados à reunião enalteceram o projeto e afirmaram que o mesmo obedece à legalidade. Nas entrelinhas, deixaram a mensagem de que só nos resta uma alternativa: concordar sem chiar. Não pretendo demovê-los de nenhum ponto de vista, mas penso como Drummond: os lírios não nascem das leis. E as flores de muçambê que ainda brotam no Mocha não nasceram de nenhum projeto.