
O Rio musical

(*) Por Ferrer Freitas
A propósito de viagem recente ao Rio de Janeiro, gostaria de discorrer sobre algo que chama a atenção , sua musicalidade, o que a torna a cidade mais cantada que se conhece, talvez no mundo. E começo por Vila Isabel, onde nasceu e viveu seus 26 anos e 4 meses Noel Rosa. São muitas as composições falando no bairro, de sua autoria isolada ou em parcerias com grandes nomes, como foi exemplo o pianista Osvaldo Gogliano, o Vadico. E aí me vem logo o belíssimo “Feitiço da Vila”, de 1934: “Quem nasce lá na Vila/Nem sequer vacila/Ao abraçar o samba,/Que faz dançar os galhos/Do arvoredo e faz a lua/Nascer mais cedo.” Passando pela Av. Presidente Vargas, altura da Central do Brasil, lembrei-me de “O trem atrasou”, do carnaval de 1941, cujos autores são Artur Vilarinho, Estanislau Silva e Paquito : “Patrão, o trem atrasou!/Por isso estou chegando agora./Trago aqui um memorando da Central,/O trem atrasou meia hora,/O senhor não tem razão para me mandar embora.” Antes, morro acima, está a Mangueira, que dispensa apresentação. O que tem de samba exaltando-a não está no gibi. O de que mais gosto é “Sei lá Mangueira”, de Paulinho da Viola, embora portelense, e Hermínio Bello de Carvalho: “Vista assim do alto/Mais parece um céu no chão./Sei lá!/Em Mangueira a poesia/Feito o mar se alastrou...”. É demais!
Segue-se o que foi a Praça Onze, desaparecida nas obras de urbanização para abertura da avenida, em 1940. Dizem que numa travessia para Niteroi, onde se apresentariam no Cassino Icaraí, Grande Otelo comentou com Herivelto Martins, muito triste, “vão acabar com a praça Onze”, frase que veio a se tornar o primeiro verso da letra do samba “Praça Onze”: “Vão acabar com a praça onze./Não vai haver mais escola de samba, não vai./Chora o morro inteiro,/Chora o tamborim...” Em 1965, ano do quarto centenário da cidade, João Roberto Kelly e Chico Anysio também a homenagearam com uma belíssima marcha-rancho: “Esta é praça onze tão querida,/Do carnaval a própria vida./Tudo é sempre carnaval”. Chegando-se à Lapa, outrora o mais famoso reduto boêmio da cidade, são muitas as composições em que o largo é citado, valendo lembrar duas, “Camisa Amarela”, de Ary Barroso, imortalizada por Aracy de Almeida no carnaval de 1939, e outra de título “A Lapa”. A primeira fala de cabrocha à procura de seu parceiro que sai pra brincar o carnaval de forma arrebatada: “Mais tarde o encontrei/ Num café zurrapa/Do largo da Lapa,/Folião de raça/Tomando o quinto copo de cachaça”. A outra, do carnaval de 1950, é também de Herivelto Martins em parceria com Benedito Lacerda: “A Lapa está voltando a ser a Lapa./A Lapa continuando a tradição/A Lapa é o ponto maior do mapa do Distrito Federal." Após a Glória vêm os bairros Flamengo e Botafogo. Só que não lembro de nenhuma música falando neles, a não ser os belíssimos hinos dos times, de autoria de Lamartine Babo. Passados os túneis, chega-se a Copacabana. O que tem de músicas falando na praia é uma grandeza. A mais famosa tem justo seu nome, Copacabana (“Existem praias tão lindas cheias de luz/Nenhuma tem os encantos que tu possuis”), cantada por Dick Farney, samba-canção de Braguinha e Alberto Ribeiro.
Na continuação da orla chega-se a Ipanema, onde de fato surgiu a Bossa Nova, a partir de 1957, nos bares de então, sobretudo o Veloso, atual “Garota de Ipanema”, local em que o samba foi composto por Tom e Vinicius, segundo os musicólogos. E ali começa começa a famosa batida de violão inventada por João, em outras palavras a fase de “...é sal, é sol, é sul”, da letra de outro famoso. E paro, não sem antes dizer que a marcha “Cidade Maravilhosa”, de André Filho, foi composta para o carnaval de 1935 e virou o hino da cidade em 1965, no seu 4º centenário, e que o adjetivo “maravilhosa” saiu da cabeça do escritor maranhense Coelho Neto, que também cognominou Teresina de “Cidade Verde”.
(*) Ferrer Freitas é do Instituto Histórico de Oeiras