
Olá, (in)desejada!

Por Rogério Newton
O Dia de Finados passou e eu gostaria de ter escrito sobre a Morte, mas como tenho publicado aqui nas segundas-feiras, nada escrevi naquele dia. Faço hoje. O leitor é muito apegado à vida, mas vai me permitir enveredar por aquele tema, mesmo que seja em tom de conversa fiada.
Um dos meus primeiros contatos com a morte foi horrível. Minha mãe me mandou visitar o cemitério no dia 2 de novembro de um ano em que eu era menino. Para ela, era um exercício de piedade cristã. Para mim, uma experiência de terror.
Havia muita gente no campo santo. Fiquei andando entre os túmulos, sem me fixar em lugar algum. Quando cheguei à capela antiga, centenas de velas ardiam sobre o piso de lápides, enchendo o ar de luz, calor e fumaça. Um grupo de mulheres rezava o terço. Tinham as expressões condoídas, principalmente quando diziam: “Livrai-nos do fogo do inferno e levai as almas todas para o céu, especialmente as que mais precisarem de Sua misericórdia”. A repetição ininterrupta das orações, misturadas aos elementos visuais e à atmosfera densa, me deixaram em grande aflição. Saí dali, impressionado. Dias depois, levado por meu pai, fui parar no consultório do médico e escritor José Expedito Rêgo, que me receitou comprimidos, dentro de uma caixinha metálica, azul e cilíndrica. Eu admirava a embalagem. Foi a coisa boa daquele episódio.
Era natural que, em grande parte de minha vida, me mantivesse a prudente distância da morte. Não só por aquele acontecimento da minha infância, mas porque, em geral, nossa cultura alimenta aversão contra esse fato inexorável das nossas vidas. Talvez a civilização em que vivemos seja bastante materialista para proporcionar meios adequados de nos aproximarmos desse mistério.
Um texto de Gandhi foi quem primeiro me encorajou a pensar o tema sem os medos habituais. Disse ele que vida e morte são estados diferentes de um mesmo fenômeno. Mas foi um filme de Akira Kurosawa que me fez ter para com a “indesejada das gentes” um olhar diametralmente oposto ao da criança aflita no cemitério do Santíssimo Sacramento. O filme chama-se O Povoado dos Moinhos e é um dos episódios de Sonhos, talvez a obra prima do cineasta japonês. Conta a história de um velho que vai ao funeral de seu antigo amor. O enterro é um desfile, com lindas fantasias, máscaras, música e dança. A morte não ficou despida da sua gravidade, mas era também uma alegoria auspiciosa.
Como o assunto me fustigasse, adquiri um exemplar do livro Vida e Morte no Budismo Tibetano, de Chagdud Tulku Rinpoche. Nunca tinha visto alguém discorrer com tanta serenidade, clareza e conhecimento sobre tema que sempre evoca emoções profundas e perturbadoras.
O que ele explica vem de uma linhagem ininterrupta de mestres de meditação que remontam ao Buda Shakyamuni. Sem deixar de reconhecer que cada religião tem seus próprios ensinamentos sobre a natureza da morte e seus próprios métodos para lidar com essa transição, Rinpoche diz que, entre os muitos métodos extraordinários e comuns para nos prepararmos para a transformação da morte, o mais grandioso deles resulta em iluminação durante a vida.
Antes que o leitor mude de página e procure assunto mais atraente, peço que não me cole o selo de budista, pois sou cristão, mulçumano, judeu, hindu, tântrico, espírita, e ainda sobra espaço para outras abordagens espirituais. Falei no livro de Rinpoche porque seus ensinamentos me parecem lúcidos e estão me tirando de um grande aperto. Creio que eles podem ser úteis a qualquer pessoa que queira vivenciar o tema da morte com sinceridade. Não acho que a morte e outros assuntos correlatos sejam de interesse exclusivo de monges e padres. As pessoas comuns podem e devem pensar e agir mais sobre eles. Me considero um ser comum, acuado por interrogações. Minha única certeza é que vou morrer um dia. Nada mais.
Além daquela publicação, comprei o Livro Tibetano do Viver e do Morrer, que passou vários anos intacto na estante. Há duas semanas, comecei a leitura. Estou adorando e recomendo aos mortais de todos os credos e filosofias que queiram mergulhar em 530 páginas desafiadoras. Um livro pode transformar a vida de uma pessoa, mas é claro que a espiritualidade livresca está fora de cogitação.
Lembro-me do poeta Walt Whitman, que escreveu algo belíssimo: “Não existe palavra capaz de dizer o quanto me sinto em paz perante Deus e a morte”. O que eu queria era só um pouco desse atrevimento.