
Opinião: Morcegos azuis
Por Rogério Newton
A notícia foi lida nos computadores e tablets de argila da gente que mora nos bairros pobres: estão paralisadas, há mais de um ano, as obras do novo mercado. Os caracteres reluzentes informam que a estrutura metálica, exposta ao tempo, está sendo roída pela ferrugem.
O redator batucou as teclas com fúria e, esgar no canto da boca, situou o mercado às margens da BR-230. Como muitos, havia tomado a pílula do esquecimento. Além de não lembrar, não queria ver as ruínas da nova construção na margem direita do riacho. A boca do esgoto, redonda e enorme como a de um animal faminto, está escancarada, pronta para o dia da inauguração.
Desde tempos imemoriais, o pequeno rio forneceu água abundante, correndo sem alarde entre as pedras, ladeado por árvores altas e cachos de marias-moles brilhantes sob o sol amarelo. O que determinou a escolha do lugar para a edificação da capela a das primeiras casas do povoado foi o córrego e sua boa água de brejo. Pouco a pouco, o território foi ocupado por hordas de esquecidos. Por isso, ninguém ali sabe explicar como morcegos azuis surgem das sombras apodrecidas.
Tem razão os internautas que murmuram protestos. Também me associo a eles, embora discorde do discurso raso, como são os discursos dos esquecidos. Entretanto, houve um que se espantou com os marimbondos fosforescentes e as borboletas, abrindo e fechando as asas enlameadas, nas longas e retorcidas hastes de metal. Teve o delírio de enxergar muçambês sob os arcos da ponte Zacarias. Estava esquecido, mas não cego.
Outro, meio vesgo, em quem a pílula provoca arrasadores efeitos colaterais, vislumbrou, numa noite insone e cheia de presságios, um jardim nas margens ressecadas e nuas. Logo, o redator de olhos miúdos e sinistros veio dizer em caracteres implacáveis que o teto de alumínio seria transportado de helicóptero e colocado sobre as hastes curvas, incandescente como uma nave ao sol.
As fotos saídas dos tubos de neon ilustram a notícia morna nas telas trêmulas de luz. Os vãos cinza de concreto. As curvas de metal ante o céu azul, acossado por nuvens brancas e lerdas. A ferrugem varando o espaço. Os fantasmas vindos das sombras, disfarçados de morcegos azuis.