
Opinião: Os tesouros da cidade

* Por Rogério Newton
Na última terça-feira, a colocação de asfalto em algumas ruas de Oeiras suscitou o início de pequena polêmica. Logo surgiram pessoas contra e a favor. Fui crítico e postei dois ou três comentários emocionados no Facebook. A polêmica, se não patinar em discurso raso, tem aspectos positivos, entre os quais, a reflexão sobre tema sério. Pra mim, a cidade é um tema sério.
Penso que não se deve incensar ingenuamente o asfalto nem condená-lo intransigentemente. Entre os dois extremos, muita coisa pode ser percebida, se usarmos racionalidade e não recebermos o asfalto como um dogma da religião progresso.
O asfalto seduz, antes de tudo, como símbolo, pois significa avanço, superação do arcaico, modernidade. Podemos pensar: “não somos capiaus, temos asfalto nas nossas ruas; somos civilizados”. Esse parece ser o efeito psicológico mais primário.
Mas não é bem assim. O discurso triunfante recebeu críticos desde as primeiras horas da Revolução Industrial, porque o progresso é, no mínimo, ambivalente. Representa avanço, mas tem seus problemas, sua face cruel. Sem falar que o discurso do progresso está cheio de armadilhas, tem viés ideológico embutido, que os apressados não percebem. As Ciências Sociais enfrentaram o tema e produziram muitas reflexões. Não remeto o leitor a nenhum texto maçante. Basta assistir ao filme Tempos Modernos, de Charles Chaplin.
Qualquer questionamento ao discurso do progresso deixa seus defensores em polvorosa. Por que isso acontece? Porque está na base ideológica do modelo de desenvolvimento que temos, que privilegia a quantidade: o PIB (Produto Interno Bruto), a safra record da soja, os metros de asfalto nas ruas... Não que isso não seja importante. O problema é que outros valores são esquecidos. Falo de valores humanos. O leitor é perspicaz e sabe o que estou querendo dizer. O pensamento geral, bem introjetado na sociedade, é de que esse é o único modelo possível. A simples possibilidade de outra forma de organização da vida causa em muita gente o mesmo efeito de um pano vermelho num touro bravo.
O discurso triunfante só admite uma resposta certa. Não aceita que as coisas possam ser diferentes, mais simples, mais baratas, mais criativas. Por exemplo, despreza as atuais discussões, em torno de “cidades inteligentes”. Não leva em consideração as experiências de outras cidades e de outros países onde o progresso e o capitalismo são mais pujantes, mas que estão revendo as velhas maneiras de se pensar, de se construir e de se viver numa cidade. Paris é mais desenvolvida que Oeiras, mas conserva uma parte de seu calçamento e faz esforços para limpar seu rio. A Alemanha tem experiências formidáveis para a bicicleta ser usada como meio de transporte. Não precisa ir muito longe, não. Cito esses exemplos apenas para mostrar que lugares mais ricos usam meios por nós considerados arcaicos e atrasados.
Há um jogo de ilusão, um estímulo à convicção de que símbolos do progresso, como o asfalto, geram, automaticamente, evolução e bem-estar. O psicólogo americano Daniel Kahneman chamou isso de “ilusão que foca”, que leva a exagerar os aspectos supostamente positivos de uma experiência, sem levar em consideração os custos, os efeitos colaterais, os problemas que podem causar...
Seja como for, acho pouco provável que alguém venha visitar Oeiras para conhecer o asfalto novo. Os tesouros da cidade e do ser humano são outros.