
Sobre Oeiras, heróis e túmulos

* Por Moura Reis
Oeiras ocupa a destacada posição de “cidade monumento nacional”, mas convive com situação, no mínimo, insólita, chocante e contraditória a essa condição. Primeira povoação e primeira capital do Piauí, túmulos de heróis e de outros personagens históricos estão em avançado estágio de degradação sob o efeito de sujeira, poeira e mato seco que dominam o antigo “Cemitério da Irmandade do Santíssimo Sacramento”, o cemitério velho. Tudo por absoluta ausência de mínimos e indispensáveis cuidados à preservação de bens públicos.
Em rápido retorno à cidade para evento promovido pelo Instituto Histórico, Câmara Municipal e a subseccional da Ordem dos Advogados do Brasil, em comemoração ao centenário do nascimento do advogado Hipólito Reis, meu pai, acompanhei, na manhã de domingo, irmãos e cunhadas em visita ao túmulo de familiares. Seria a última etapa das emoções e alegrias de reencontros e recordações da noite anterior. Enquanto as irmãs e cunhadas rezavam, lembranças de conversas ouvidas da avó passaram a me bailar na mente e se fundiram em lápides de “aqui jaz” a tataravó ou heróis de guerra, sem vínculo de antepassados. Somaram-se a elas recordações de leituras da juventude e me trouxeram de volta imagens perdidas no tempo. Tempo bastante para trocar a dor da perda pela poética suavidade de doces lembranças dos nossos mortos. E os mortos, meus mortos, estavam todos lá, no lugar deles, a meu lado, ampliando a intensidade da bela amanhã de domingo de sol e multiplicando o enlevo dos últimos minutos do breve retorno à cidade da minha infância.
A curiosidade incurável do velho repórter pegou carona nessas recordações da infância e juventude e me fez procurar a parte mais antiga e histórica do cemitério, que não visitava há muitos anos.Decidi localizar a capela, construída nos anos 60 do Século XIX por ordem do cônego João de Souza Martins, filho do lendário Manoel de Souza Martins, o Visconde da Parnaíba. Foi um choque. A construção de quase um século e meio está praticamente reduzida a escombros. Localizei com dificuldade, pois enegrecida pela sujeira, e consegui ler com esforço, a lápide indicativa do túmulo de Elias de Souza Martins, “Comandante Superior da Guarda Nacional, falecido a 5 de março de 1866, aos 45 de idade” que “prestou a seu paiz rellevantes serviços, quer na rebellião chamada de Balaios havida nas Províncias do Maranhão e do Piauhy, quer na guerra em que se empenhou o Brazil com a República do Paraguai”. A lápide de mármore informa ainda que sua terceira mulher, Constança Roza da Silva Moura, “lhe mandou gravar este epitaphio em testemunho de seu amor e da mais saudosa recordação”. E termina com frase padrão da época: ”A terra lhe seja leve”. A julgar pela aparência exterior, o herói de guerra jaz sob o peso de detritos.
Em frente à capela, identifico outra lápide com letras esculpidas em pedra de cantaria: “Aqui sepultou-se o cadáver de Esperidiana Roza Ferreira, fallecida a 5 de outubro de 1882 na idade de 50 annos.” Abaixo de frases em latim, informa-se que a “singela louza” da tataravó Esperidiana “foi mandada colocar pelo genro Raimundo Jozé Ferreira”, certamente meu tio-bisavô, e que a sepultura “foi comprada por cem annos". Diante das informações lapidares, não afastei a hipótese de compartilhar dívida de quase 30 anos por excesso do tempo de ocupação da sepultura. E sobretudo não deixei de constatar e lamentar as péssimas condições de higiene que circundam minha tataravó.
A poucos metros dali, outro choque de igual intensidade e pavor: em meio a tumbas quebradas, cobertas de terra enegrecida, avista-se quase inacessível, devido a quantidade de mato seco, entulhos e pedras soltas, a cruz com desenho de uma coroa na confluência dos braços, que identifica a sepultura do poeta Nogueira Tapety (30-12-1890/18-01-1918), o trágico e lírico que “amou o bem, o belo e a verdade”. Obra de autoria de Burane Freitas, a tumba do poeta parece exalar, como nos versos de Tapety em louvor aos olhos de sua amada, “O espírito da luz, a luz humanizada,/Mais brilhante e maior do que a própria alvorada/Que brilha, mais não vê, nem pode sentir nada!”
De volta ao frio de São Paulo, as imagens terríveis do desrespeito aos nosso mortos históricos continuam a me entristecer. Constato a trágica ironia que o tempo incorporou aos belos versos de Nogueira Tapety. A luz “maior que a alvorada”, brilha, não vê “nem pode sentir nada”. Eu vi e senti uma dor imensa. Convido os oeirenses que demonstraram sensibilidade, grandeza e respeito à memória do meu pai, que visitem o cemitério velho. Estou certo que sentirão a mesma dor e descobrirão, sobretudo que podem, que podemos fazer. E apelo a todos no sentido de que restauremos a dignidade de nossos mortos, de nossos heróis, de nossos antepassados, de nosso maior poeta. De nosso patrimônio histórico.
* Moura Reis é jornalista e mora em São Paulo