
Tudo está intimamente ligado no mundo

Quando o Papa Francisco escreveu a Encíclica Laudato Si, dava sua sábia visão de mundo, ao tempo em que profetizava, sob a inspiração divina. Nada no mundo está desligado, o Criador sempre realizou e realiza sua obra de maneira harmônica.
Vivenciamos uma caminhada quaresmal sob o forte convite de Jesus a nos convertemos ao Evangelho, ao amor, ao cuidado. E a Campanha da Fraternidade nos ajudou a imergir nesse chamado ao respeito à obra de criação em sua integralidade: Fraternidade e Ecologia Integral; “Deus viu que tudo era muito bom.”
Na culminância desse tempo de preparação, subimos a “doce colina” em nossa oeirensidade, colorida de roxo, na quinta-feira da Fugida, com a imagem centenária do Senhor dos Passos coberta. A música era o silêncio, entremeada pelas preces também silenciosas da multidão que se espremeu para transpor a ponte do Pouca Vergonha e venceu a subida até nosso “Horto das Oliveiras”.
A comunidade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, com zelo e respeito à natureza, realizou um trabalho artesanal da coleta de alecrim, em regime de poda manual. E preparou em torno de cinco mil unidades de “lembranças do Bom Jesus dos Passos” perfumadas para distribuir a quem fosse até ali. O aroma dominou todo o “Horto” e se espalhou por toda a cidade tricentenária.
Durante toda a noite romeiras e peregrinos, de diversas regiões, chegavam para perto da imagem do Bom Jesus dos Passos no alto da colina. Ao meio dia, o ápice da reflexão dolorosa, com o canto e recitação do “Ofício ao Bom Jesus dos Passos”, rememorando os mistérios dolorosos: agonia no Getsêmani, quando Jesus transpirou suor e sangue, a traição por um dos seus escolhidos, o julgamento realizado para satisfazer os interesses dos poderosos, a flagelação, coroação de espinhos, a subida dolorosa ao Calvário, crucificação e morte de Jesus. Tudo está consumado.
O astro rei passou a sexta-feira de Passos brincando de esconde-esconde, por trás das nuvens espiava o ir e vir dos romeiros. Ao cair da tarde, quando a Verônica entoou seu lamentoso canto, na saída do Rosário, as nuvens cobriam a multidão abafada, que se abanava com ventarolas, com leques, com as mãos, como podiam para tentar driblar o calor de caldeirão.
Descemos pelos rochedos talhados, primeiro Passo (Maria de Cota), segundo Passo ao lado do Sobrado Major Selemérico, Rua do Fogo até alcançar o terceiro Passo, já com o céu completamente fechado e a tempestade armada. Foi com vendaval que a imagem do Bom Jesus dos Passos destampou do beco dos Correios para o largo em frente ao Paço Municipal, na Praça das Vitórias.
A chuva caiu, o vento se exaltou, peregrinas, romeiros, voluntários, pessoas de todo jeito, de toda natureza, de todo status... todos alcançados pela água que caiu do céu de forma torrencial. A água subiu rapidamente e arrastava copos e garrafas plásticas que os romeiros tinham deixado pelo caminho. A chuva também arrastou sapatos, o vento quebrou sombrinhas, e não havia como se abrigar tanta gente.
Assim como no episódio da barca, em que Pedro e os demais discípulos se arvoraram com pavor da tempestade, aqui também, como se uma palavra de Jesus houvesse sido pronunciada, os ventos cessaram, a chuva findou-se e, compassadamente, a multidão voltava a se reunir para a escuta atenta do sermão do encontro, quando a imagem de Nossa Senhora das Dores passa a acompanhar a imagem do Bom Jesus na Via Crucis a céu aberto.
Para o sertanejo a chuva é sempre bênção. E o cheiro de chuva se aliou ao perfume de alecrim que já dominava a atmosfera oeirense, conduzindo os fiéis a acompanharem a procissão, com fé e mais fervor, a presenciar as três voltas da imagem no Passo do Engano, subindo a Rua Clodoaldo Freitas para alcançar o último Passo (Julica) e adentrar a Catedral de Nossa Senhora da Vitória.
As praças, os lajeiros, os calçamentos, a piçarra, os becos, as fontes luminosas, a grama... todo o caminho foi banhado pela torrente. Os caminheiros pararam um pouquinho para verificar a grande dor, o grande sofrimento, a plena entrega de Jesus por nossa salvação. E os romeiros, as peregrinas, os discípulos missionários de Jesus, seus seguidores retornaram para suas casas com as flores de Passo nas mãos e o coração transbordando de alegria, por saberem que têm um Senhor que zela por nós e que não nos deixará sermos abatidos pelo mau tempo de seca nem pela desesperança.
E como “tudo está interligado no mundo”, a vivência de Passos nos leva a melhor compreender nossa responsabilidade pelo uso consciente dos bens da Criação, nosso relacionamento com Deus, nosso trato com nosso semelhante, nossa lida com as obras da natureza, pelo consumo consciente de “tudo muito bom” que Deus criou e submeteu ao ser humano.
Que nos conscientizemos sobre os desmandos que temos provocado contra a obra de Criação, pelo egoístico modo como temos nos relacionado, espoliando os recursos naturais sem dar tempo a que o solo, a água, o ar, a fauna e a flora se recuperem. Que, nos Passos do Bom Jesus, sejamos verdadeiros peregrinos de esperança, promotores do bem, por onde passarmos, como testemunhas vivas do Evangelho.
Sânia Mary Mesquita – advogada e professora
Oeiras, 12 de abril de 2025.