Um homem resolvido
Quando me entendi como gente, Possidônio Queiroz já era uma legenda em Oeiras. Conheci-o no Mercado Público. Era o único comerciante da cidade que vendia livros. Meu pai fazia a feira e guardava os produtos de maior peso, perto do balcão: cachos de banana enormes, sacolas de pano cheias de grãos e goma seca, frutas da época, rapaduras, que ficavam à nossa espera até levarmos pra casa. Eu ficava remanchando só para observar o professor em conversa com sertanejos que o procuravam em busca não só de aconselhamento jurídico.
Um dia, um grupo de índios veio do nada e apareceu na feira. Foi um reboliço. Pequena multidão o cercou, abismada com a imagem viva daqueles seres que existiam também fora dos livros e fragmentos da memória oral. Só uma pessoa compreendeu que não eram extraterrestres. Conhecedor da História do Piauí, Possidônio sabia que as nações nativas haviam sido extintas a ferro e fogo. Tratou-os como visitantes especiais e convidou-os a irem até sua casa, onde os recebeu com honras de estilo. Retirou da estante da sala uma garrafa de vinho de caju e celebrou aquele encontro de almas.
Para tudo que se fazia na cidade, em termos intelectuais ou cívicos, Possidônio era uma espécie de oráculo. Secretariava reuniões, redigia discursos, aglutinava pessoas em torno de causas coletivas, como o movimento em defesa do nome da cidade, na ditadura Vargas. Na década de 1970, ajudou a fundar o Instituto Histórico de Oeiras e, com os poetas Costa Machado e Expedito Rêgo, criou o jornal O Cometa, do qual foi um dos redatores permanentes em 60 inacreditáveis edições ininterruptas. Cansei de vê-lo passar por minha rua, no terno cinza, rumo ao Sobrado, para sessões solenes. Quase nunca o vi sozinho, pois sempre estava ensinando a alguém. Mas dizia-se que varava noites, em silêncio, lendo sem parar.
Depois que saí para continuar meus estudos, formulei um rótulo para ele: intelectual conservador. Uma vez, nas férias, houve um encontro no Oeiras Clube. No final, o professor estava palestrando numa roda. Acerquei-me dele e passei a provocá-lo, citando trechos do Prefácio Interessantíssimo, de Mário de Andrade. Ele redarguiu polidamente, falando em Rui Barbosa e Coelho Neto, o que só fez piorar as coisas.
Meu julgamento só veio a mudar quando organizamos, Celina Martins e eu, o concerto musical A Dança dos Espíritos, no Cine-Teatro Oeiras, em 1987. Havíamos destinado a primeira parte aos quase vinte músicos que vieram de Teresina, que apresentaram peças de Villa-Lobos, Ravel, Reginaldo Carvalho e outros. O encerramento foi uma apresentação emocionante das senhoras bandolinistas, tocando valsas de Possi. Houve quem não pode conter as lágrimas.
Veio o segundo concerto, ano seguinte, com o grupo Ars Tupiniquim, regido por Emmanuel Coelho Maciel, que pediu partituras de autores locais. Ele ficou impressionado com as valsas de Possidônio. Anos depois, para mostrar os arranjos que criou para as composições, o maestro veio a Oeiras com um grupo de música de câmara. Foram alojados numa pensão. Ninguém da Municipalidade foi recebê-los. Cansados da viagem, os músicos perguntaram se podiam tomar uma cervejinha, por conta. A dona do estabelecimento disse que precisava de autorização da Prefeitura. Foi telefonar e voltou constrangida. O alcaide, que a história se encarregou rapidamente de esquecer, não aprovou a celebração nem foi ver a apresentação à noite, no Cine.
Todos sabem que Possidônio era exigente em matéria de linguagem, musical ou não. Por isso, ficou muito feliz com as execuções do Ars Tupiniquim e do grupo de câmara. Sua gratidão ao Prof. Emmanuel era imensa. Entre os dois gigantes da música floresceu profunda amizade, selada por mútua admiração.
Quem me confirmou que Possi era muito criterioso foi Petinha Amorim, sua aluna e bandolinista predileta, que, menina, o conheceu na casa dela, onde o pai João Rêgo deu muitas aulas a Possi. Seu marido, José Amorim, era o único violonista de Oeiras capaz de acompanhar o músico na flauta. Os dois formaram dupla famosa de seresteiros. Para Possidônio, José Amorim tocava melhor que Dilermando Reis. Os dois tinham uma espécie de senha, ao irem para serenatas. Quando Possidônio saía primeiro de casa, chamava o violonista tocando a introdução de Menininha, valsa que João Rêgo compôs para Petinha, cuja partitura desapareceu. José Amorim avisava a Possidônio tocando uma peça de Dilermando.
Minha admiração cresceu ao fazer uma pesquisa e descobrir, entre seus papéis, a cópia de uma pequena carta endereçada ao poeta Gaudêncio Carvalho. Em 1971, os dois bateram às portas do prefeito, reivindicando providências para o Riacho Mocha, cujas agressões já eram visíveis. O alcaide não entendeu a nobreza do gesto. “E o riacho continua imundo, acabando-se”, lamentou Possi, num desabafo de torturante atualidade.
Possidônio Queiroz me premiou com a nobreza de sua hospitalidade. Quando ia visitá-lo, eu ficava sem jeito, pois se alegrava com minha presença e punha cadeiras no terraço para conversas, nas quais eu era, quase sempre, apenas um ouvinte. Acima do que fez como músico e escritor, seu tesouro mais precioso era de um homem existencialmente resolvido, de bem com a vida.