
Qual a diferença entre Prestação de Contas e Defesa Técnica?
06/06/2025 - 14:33Por Hielbert Ferreira – Advogado, Conselheiro Seccional da OAB-PI e Presidente da Comissão de Defesa dos Municípios da OAB-PI
Inúmeras foram as vezes que contei, em mesas de bares ou reuniões de amigos, uma passagem que se deu comigo, há alguns anos, em viagem que fiz com grupo musical a Caracol, pequena cidade encravada no meio da Serra das Confusões, mais precisamente a 605 quilômetros da capital Teresina. Meu consciente reproduz com exatidão o infeliz comentário do contrabaixista de nome Manuca ao descer do ônibus: “morar aqui é a prova maior da ignorância humana!”
Paramos em frente à igrejinha local e a primeira pessoa que nos foi apresentada, na verdade se apresentou, foi um sujeito de baixa estatura, riso aberto, sem dentes, calça jeans com as barras enroladas até os joelhos, além de rosto calejado que lembrava muito um pigmeu: “prazer, Zé Pretim!” Após acomodar-nos numa pousada, eu com sede severa solicitei ao baixinho que se apresentara que me levasse a algum lugar para tomar água. No primeiro barzinho que paramos uma senhora me trouxe um copo com um liquido amarelado, mais próximo à coloração de um suco de laranja. É água!, informou Zé Pretim, percebendo minha cara. Confesso, não tive coragem de beber. De pronto disfarcei e pedi água mineral. “Não temos!”, desculpou-se a senhora do bar.
Meu guia então sugeriu que fôssemos ao restaurante de um certo Paulão, um moço filho do lugar que, depois de morar muitos anos em cidade grande voltara para investir nesse ramo na cidade natal. Segundo o guia, lá, sim, tinha muitas novidades.
Depois da água, que me fez um bem enorme, pedi uma cerveja. Zé Pretim adiantou-se logo dizendo que gostava mesmo era de pinga, e de copo cheio! O pequeno grupo que se formara à minha volta, sorriu. Um certo Paulão reforçou, em tom de brincadeira: “É isso mesmo, esta peste só bebe de copo cheio!” Pedi que lhe servissem da forma que quisesse, embora, cá com meus botões, receasse que aquilo poderia não dar certo. Aquela maldita cachaça, em doses cavalares, com certeza faria um estrago danado naquele corpo franzino. Mas..., que fazer! Uma saborosa galinha foi preparada pela esposa do Paulão, que, ao servir-me, em tom amistoso falou que me sentisse em casa, o que era desnecessário, pois que assim já me sentia! Ninguém se aproximava sem apertar minha mão. Todos me davam boas-vindas. Meu orgulhoso guia, de pernas cruzadas, um pau-ronca entre os dedos, limitava-se a beber pinga e sorrir. Novamente, com meus botões, pensei: Manuca exagerou!, não é ignorância morar em Caracol. Aquela cidadezinha tem uma gente que parece falar com o coração e olhar com os olhos da alma. Um povo consciente das dificuldades, mas que nunca desalenta. Filhos orgulhosos de seu chão, pequeno mundo cercado de serras com fendas intransponíveis que parecem dizer que não há saída! Orgulhosos de tudo que ali dá.
“E dá!” Não sei bem quantos copos meu guia já havia entornado, quando começou a discorrer, orgulhoso, da grande quantidade de feijão colhido. “Pena não se ter como escoar a produção”, acrescentou em tom discursivo. Os olhos dos outros foram ao chão como a concordar com a dura verdade. Batendo no peito levantou-se e, mesmo eu sentado, ficamos cara a cara. Continuou com a palavra e logo citou dois grandes escritores nascidos ali, Cineas Santos e um juiz de nome..., houve um lapso de memória, talvez em razão da “marvada” entornada, e não lembrou o nome do segundo: “ah, ninguém é obrigado a saber de tudo!, resmungou. Zé Pretim queria referir-se ao nobre magistrado e escritor, William Palha Dias.
Nunca mais voltei a Caracol. Não sei se Zé Pretim ainda está do lado de cá. Sempre há algum fato, ou acontecimento, que me faz lembrar dele. Outro dia, ao ler um artigo de seu conterrâneo, Cineas, este cita algumas deficiências e desacertos da primeira capital, como não ter encontrado ali um simples suco de laranja. Lembrei-me então de Zé Pretim e da água cor de suco de laranja que me foi servida na terra do grande educador, poeta e editor; das distâncias dos mundos, das cidadezinhas rodeadas de serras com fendas e de outros tipos de muralhas intransponíveis, como a minha Oeiras. Quintana é fato: “Nasci em Shangri-lá. Ora!, mas quem não nasceu?” Todos nós gostamos da terra em que nascemos. E é muito difícil ouvir críticas, mesmo que sejam verdades doridas.
Agora mais esta. Por onde passo venho sendo inquirido, e naturalmente recebendo críticas, sobre o episódio (ganhou a Internet!) envolvendo a atual secretária de cultura de Oeiras, que se surpreendeu ao saber que Eça de Queirós, autor lusitano da obra prima O Primo Basílio, era homem e não mulher, como pensava. Eu, bairrista que só, tentando proteger a minha Shangrí-lá, vou disfarçando: “talvez, ela tenha entendido Raquel de Queiroz!” E cá com meus botões: ninguém é obrigado a saber de tudo, como bem disse Zé Pretim, lá em Caracol!
(*) Jota Jota Sousa é escitor e oeirense