
Na terra do Bom Jesus dos Passos

Por Sânia Mary Mendes Mesquita de Sousa Santos
Às 3 horas da tarde, na quinta-feira que antecede o Domingo de Ramos, o velho sino toca na Catedral para anunciar que os rituais da Semana Santa estão se iniciando, com um cenário na cor roxa, e toda a cidade a inalar o cheiro do alecrim que já passa a adornar os Passos.
Nesse caminhar, o sino choroso faz memória da hora em que o Cristo Crucificado expirou e entregou o espírito ao Pai, do alto da Santa Cruz, a Hora da Misericórdia. O som secular denota a compaixão de Deus para com seu povo pecador, ao enviar seu Filho para morrer para nos salvar.
Desde a quarta-feira de Cinzas, a rotina mudou. O costume local preceitua que às quartas e sextas-feiras do tempo da Quaresma não ingerimos carne. Outr@s fiéis devotos se penitenciam com privações de outros hábitos que lhes parecem prazerosos, com objetivo de alcançar a purificação e reconciliação com Deus. Essa dinâmica faz parte da prática que é recomendada por Jesus de vivência do jejum, da oração e da caridade, e a que @s católic@s devem intensificar durante os 40 dias de reflexão, numa espécie de retiro coletivo.
A caminhada quaresmal se aproxima de seu término: já se passaram 37 dias de preparação para a Páscoa. Nesse período foram refletidas as temáticas propostas durante 10 encontros de Via Sacra na Catedral de Nossa Senhora da Vitória, cujas imagens estão cobertas com tecido roxo, cor característica do sacrifício de Jesus pela Salvação da humanidade.
Nesta última semana, vivenciamos liturgicamente as Sete Dores de Nossa Senhora. São assim chamados os momentos em que, plenamente unida ao seu Filho Jesus e ao projeto do Pai, Maria pôde compartilhar, de modo singular, a profundidade de dor e de amor do seu sacrifício. São elas: a profecia de Simeão, a ida para o Egito, Jesus perdido no Templo, o encontro a caminho do Calvário, a morte, o descimento da cruz e o sepultamento de seu filho.
Na quinta-feira da Fugida, um grupo de mulheres devotas de Nossa Senhora, zeladoras do Sagrado Coração de Jesus, se reúne para preparar a imagem secular de Nossa Senhora das Dores em um andor, para que se realizem os rituais dos dias vindouros. Vestida em roxo, com manto da mesma cor, a imagem de Nossa Senhora das Dores traz a expressão de sofrimento, ao tempo em que transparece confiança nas promessas do Pai.
Cabe aos homens preparar a imagem de Bom Jesus dos Passos. Ele é vestido com sua túnica roxa, a cintura atada por cordas, a carregar sua cruz. Na cabeça, além do cabelo cacheado, o Bom Jesus tem uma coroa de espinhos e um resplendor de prata. O andor permanece envolto por um dossel também na cor roxa. A cândida expressão do rosto da imagem, retratada com muita sensibilidade artística e inspiração divina, permanece coberta, para ser revelada somente quando da chegada à doce colina do Rosário. A imagem de Bom Jesus tem um olhar sofrido, porém resignado, sua cabeça está ligeiramente baixa como que para acompanhar piedosamente os "caminheiros", os passantes que acorrem a Ele.
Embora não se saiba com precisão o início desses rituais, nem mesmo a época da confecção da imagem de Bom Jesus dos Passos, por relatos dos mais antigos, tem-se que na primeira metade do século XIX ela já havia chegado a Oeiras.
Na quinta-feira à noite, reza-se a Missa de Abertura da Semana Santa em Oeiras, com reflexões voltadas para nos solidarizarmos e sermos grat@s ao sacrifício de Jesus pela humanidade. Ao final da missa, a imagem de Bom Jesus dos Passos, ainda encoberta, é incensada e o Coral Madrigal entoa piedosamente a primeira parte do Salmo 50, o Miserere, um canto de súplicas de misericórdia a Deus.
Em direção à Igreja de Nossa Senhora do Rosário, que representará o Horto das Oliveiras (em que Jesus se refugiou para meditar e orar antes de sua flagelação), segue a procissão, com a condução da imagem por homens vestidos de opas (uma espécie de colete) na cor roxa. Na procissão, recomenda-se silêncio e reflexão sobre as dores e sofrimentos a que o Cristo se submeteu pela salvação da humanidade, enquanto são percorridas as ruas e becos da velha urbe.
Durante toda a procissão, os sinos das duas Igrejas permanecem a entoar seus lamentos. Quando a imagem entra e é colocada no Altar, segue-se a retirada do envoltório, o canto da segunda parte do Miserere, a queima de incenso, aspersão de água benta, e, finalmente a contemplação da imagem do Bom, Manso e Humilde Jesus. A completar o quadro de piedade, tem-se a ornamentação da Igreja do Rosário, perfumada de alecrim e enfeitada com a tradicional "flor de passos".
Após a bênção final, grande número de fiéis devot@s passa a noite a se revezar em orações, chegadas de suas romarias, caminhadas de longe e de perto. Os Passos já estão em pleno processo de ornamentação. Ao amanhecer da Sexta-feira de Passos, a comunidade se une para servir o café d@s romeir@os no Largo do Rosário, para às 7 horas da manhã ser rezada a primeira missa.
Ao meio dia é rezado e cantado o Ofício do Bom Jesus dos Passos, momento em que a Igreja de Nossa Senhora do Rosário é ocupada por uma multidão de fiéis devot@s, romeir@s e turistas, que unem suor, lágrimas, incenso e alecrim a sua fé no Bom Jesus dos Passos, tornando o momento de grande emoção, despojamento e união com o céu.
As ruas da cidade já estarão fervilhando de fiéis que procuram o Bom Jesus dos Passos, ali como ícone de expiação de nossos pecados, para realizar os rituais devocionais e de fé. A Igreja do Rosário permanece a abrigar tais manifestações até que ao entardecer, a imagem é levada, mais uma vez, pelo grupo de homens que o trouxeram, a fim de percorrer os becos, vielas e os Passos, numa Via Sacra a céu aberto, entremeada por orações e pelo canto da Verônica, a Maria Beú, que chama atenção para a tamanha dor suportada pelo Senhor dos Passos.
Sânia Mary Mendes Mesquita de Sousa Santos
Oeiras (PI), 11 de abril de 2019.