A profundidade da dor e a superficialidade da exposição
31/03/2024 - 18:01Espalhar fotos e vÃdeos de vÃtimas fatais de acidentes constitui um ato criminoso.
Rogério Newton
Sábado de manhã, bem cedo, fui à Av. Raul Lopes. Quando cheguei, vi um automóvel virado. barracas e tendas sendo armadas e mulheres com olhos insones guardando lugar. Então lembrei: hoje é dia do corso. Desci a calçada e fui caminhar nas trilhas entre árvores, na margem do rio. Ao ouvir o canto dos pássaros e um som que lembrava cachoeira, pensei: lugar mágico. Mas somente por segundos: a cascata era a boca de um esgoto na margem oposta e o canto do passarinho parecia não se importar com o mau cheiro de outro canal despejando detritos aos meus pés.
Caminhando ainda um pouco mais, deparei lindas árvores e, em muitos lugares, lixo descartável: preservativos, copos, papéis, latinhas de cerveja, restos de sacolas plásticas. Um babaçu, enorme e vertical, procurava o céu entre os galhos de uma mangueira de tronco formidável. Lugar bonito, agradável, não fosse a sujeira e o mau cheiro. Aà comparei: a avenida está sempre limpa, mas não os espaços entre as árvores, no pequeno bosque marginal ao rio. O calçadão nunca deixa de receber pessoas. As trilhas de terra, que as árvores ensombram, raramente acolhem um caminhante. Melhor andar no calçadão, mais civilizado, mais seguro.
De noite, fui ver o desfile, meu filho e eu. Encontramos muitos carros na Nossa Senhora de Fátima e muita gente fantasiada, com copos na mão. Seguimos a troça pela Petrônio Portella e rimos a valer de tantas coisas engraçadas e bizarras. Na Raul Lopes, a multidão frenética, mas nem tanto: muitos só passeavam e bebiam. Perto da ponte estaiada, quase não dava pra passar, de tanta gente. Os foliões se animavam mais na passagem frente às câmaras de TV. Subimos a ponte, cheia de automóveis, seres humanos e motocicletas. Ver a multidão lá de cima foi um espetáculo impactante, misto de alegria e mixórdia.
Voltamos para casa, pela Dom Severino. Entramos na Ininga e, ao passarmos frente ao edifÃcio onde mora o poeta, resolvemos tocar a campainha. Ele demorou, mas veio nos receber. Importunamos seu sossego com nossa excitação controlada, nossas notÃcias quentes de humores e suores. A conversa foi animada e cheia de risos. Descemos pelo elevador. Ao chegarmos à rua, topamos um bêbado a nos pedir carona. Explicamos que andávamos a pé. Ele nos acompanhou, loquaz. Apressou-se a nos tranquilizar: era preto e pobre, mas não marginal; gostava de caninha e, vez em quando, fumava e cheirava. Ao dobrarmos no Hospital São Paulo, prosseguiu com seu texto e andar cambaleantes, a garrafa no bolso traseiro da bermuda.
Na manhã seguinte, de bicicleta, regressei à Raul Lopes. O pessoal da Limpeza Pública já havia varrido tudo, de madrugada. Só um carro pipa despejava água no asfalto. A não ser pela presença dos sacos de lixo, da solidão de tendas fechadas, de pequenos vendedores de bebida e espetinho que se preparavam para ir embora, e de certo peso no ar, quase nada lembrava o carnaval. O rio não mudou o seu curso e continua a receber, de águas abertas, o que se joga debaixo do tapete da avenida.
O teresinense pode bater nos peitos: temos o maior corso carnavalesco do mundo. Sem esse tÃtulo, muita cachaça e cavalares doses de ilusão, ninguém segura esse rojão.