
Em entrevista, Emanuel Vital fala sobre o Dia da Consciência Negra e o legado de ‘’Negras e Negros do Rosário’’
19/11/2024 - 19:48Emanuel Vital é professor, jornalista, ambientalista e negro do Rosário.
Por Rogério Newton
O ator e diretor oeirense Xico Carbó, que na Universidade de Salamanca (Espanha) escreveu sua dissertação de mestrado (1997) sobre o teatro como instrumento de animação cultural, tendo o Cine-Teatro Oeiras como principal espaço dessa animação, volta a refletir sobre a cultura de Oeiras, desta vez a partir do carnaval.
Ele e um grupo de amigos, depois de uma discussão sobre o carnaval, resolveram criar o bloco Joga o Barro na Parede, em 2008. Mas, como ele mesmo explica nessa entrevista, não se trata apenas de um bloco de carnaval: pretende ser (e está sendo) uma experiência fecunda, organicamente situada no contexto da cultura e da história de Oeiras. Xico e seus amigos, a partir de uma análise da realidade local, construíram uma reflexão e uma prática, nas quais o carnaval não é só uma festa cultural (e que festa!) que proporciona prazer, mas também uma manifestação intimamente ligada ao sentido de comunidade.
Essa perspectiva coloca o bloco como estimulador de um “pensar cultural” e de um “fazer cultural” que incorporam elementos locais vinculados à memória da cidade e de seus carnavais. O percurso intencional por ruas históricas e pelo Rosário, a identificação dos Foliões do Samba como principal símbolo de resistência de uma tradição viva, o trabalho de oficinas com crianças de bairros pobres indicam o pertencimento a uma cultura e um forte sentido de alteridade.
Cientes dos perigos de que o uso indevido da memória social resulte em “mumificação” ou volta piegas ao passado, os criadores do bloco sugerem uma atitude fundamental, que é o uso da criatividade e do humor. Nesse sentido, o estatuto pode ser considerado uma peça anárquica e brincalhona. Mas, como o Joga o Barro na Parede é um “bloco de sujos e de limpos de coração”, há espaço para todos, inclusive para aqueles que não compartilham das idéias dos seus criadores. Afinal de contas o carnaval é uma festa popular onde não há hierarquias, a não ser a de Momo, um rei gorducho, zombeteiro e brincalhão.
Rogério Newton: Como nasceu o Joga o Barro na Parede?
Xico Carbó: o Joga o Barro na Parede nasceu em Teresina, num café com cuscuz que Vanda Queiroz ofereceu, na noite de Santo Reis de 2008, aos conterrâneos e amigos Gutemberg Rocha e Gardenia; as irmãs Beth, Celina e Ceiça Martins; Pedim Freitas e Raimundo de Cicim, que saiu antes para ciceronear Rossine, que estava de passagem por Teresina. Naquele divertido encontro, eu os recebi bregamente estilizado, o que terminou sendo minha caracterização para o carnaval daquele ano.
Falamos muito sobre Oeiras, os mais variados temas. Quando o assunto foi carnaval e nos perguntamos aonde iríamos, veio à tona toda nossa insatisfação. Todos lamentamos. Comentei sobre nossa decepção com o carnaval de 2007, que haviamos passado (eu e Vanda) em Oeiras. O "nosso carnaval acabou”, foi a conclusão. Então, pra relembrar, cantamos algumas marchinhas, falamos das "cabacinhas de cheiro" de Conceição Leite, das máscaras que fazíamos com Chico Castanhola; das turmas de mascarados e blocos de rua; o corso na Praça das Vitórias; os bailes no Oeiras Clube, UJOC... Foi então que Guga (Gutemberg Rocha) cantou com Gardenia "Oeiras sempre Oeiras, desde o tempo de Pombal", música que ficou sendo o "hino" do Joga o Barro na Parede. Daí, nos comprometemos a criar um bloco para desfilarmos naquele mesmo ano (2008). O nome Joga o Barro na Parede, retirado da letra do "hino", só apareceu no segundo encontro, na casa de Celina, após uma avalanche de sugestões. Creio que acertamos em cheio. Jogamos o barro na parede, uma parte colou outra desprendeu...
Rogério Newton: o que caracteriza o bloco?
Xico Carbó: o Joga o Barro na Parede é um "bloco de sujos e de limpos de coração", como diz o artigo 3° do antiestatuto. Para participar, bastam alegria e criatividade. Espontaneidade anárquica e irreverente. Nada da "ordem quadrada" controlada por um "cordão de isolamento". Imaginamos o bloco onde se possa ser o que quiser, ocupar o espaço que quiser; brincar e se divertir com toda família, sem neuras de qualquer espécie. Resumindo: "Se perigar o maluco aqui sou eu".
Rogério Newton: a concepção do bloco bebe na mesma fonte dos antigos carnavais de Oeiras?
Xico Carbó: é verdade! A lembrança dos blocos "Meninos do Mocha" , "Fofoca Samba, dos bailes infantis; o arrastão dos Foliões do Samba descendo o Rosário; a Praça das Vitórias tomada, espontaneamente, todos juntos esperando a passagem dos blocos; foliões irreconhecíveis em suas fantasias... Existem belos registros fotográficos daquele tempo em que o carnaval era muito mais espontâneo.
Rogério Newton: em se tratando de carnaval em Oeiras, a idéia da alvorada é nova, não é?
Xico Carbó: creio que sim. Uma idéia que nos agrada muito: poeticamente, anunciamos a festa com marchinhas no raiar do sábado de carnaval. Este ano incluímos no percurso o Mercado Público. É como disse Guga, no Mural da Vila:
"A alvorada foi sublime. Sair pelas ruas de Oeiras, pisando os paralelepípedos da velha cidade, ao som de belas marchinhas executadas pelo pessoal da Banda Santa Cecília, é uma experiência que só quem viveu sabe avaliar. Praça da Matriz, Rua das Portas Verdes, Rua do Fogo, Rua do Sol, Rua da Feira... Um trajeto cheio de histórias, de memórias, de saudades, de encantos e poesia. A cada passo, portas se abrindo, pessoas saindo às calçadas, outras botando a cara na janela, algumas se aquietando na cama, entregando-se às carícias da melodia a “invadir” sua privacidade, seus aposentos e suas lembranças. Ver o sol raiar e a vida ressurgir após uma noite em que a folia quase encontra o dia... Que maravilha! Para completar, um revigorante caldo de carne com pão no Logradouro Rocha Neto. Tudo isso na manhãzinha do sábado, dando início ao carnaval de 2010".
Rogério Newton: este foi o terceiro ano do bloco. Como você avalia?
Xico Carbó: estamos felizes com o Joga o Barro na Parede. A cada ano mais foliões... Neste ano muitos pais levaram seus filhos para acompanhar. Uma alegria!
Muitas pessoas nos perguntavam se sairíamos também na segunda-feira e na terça de carnaval. Mas o Joga o Barro na Parede se propõe apenas a fazer a alvorada no sábado de carnaval e a sair pelas ruas no domingo à tarde. Acreditamos que isso possa estimular outros blocos a ocuparem o espaço nos outros dias do carnaval.
Rogério Newton: Joga o Barro na Parede propõe um percurso por ruas históricas que vai até o Rosário. Parece que a intenção é não só homenagear aquele bairro, mas também inserir o bloco no contexto da história e da cultura de Oeiras. É isso?
Xico Carbó: verdade! O Joga o Barro enfatiza a questão da identidade, por isso não pode distanciar-se do contexto histórico e cultural da cidade. A cultura, a história, a cidadania são pontos-chave. Homenagear o bairro Rosário foi uma das nossas primeiras idéias. Por quê? A importância do Rosário para a identidade cultural de Oeiras é enorme. No primeiro e segundo ano que o bloco foi para as ruas, começamos o desfile subindo para o largo da igreja do Rosário, para nos encontrarmos com os "Fuliões do Samba" (parece que é com "u" mesmo) e dali descermos juntos o mesmo percurso. Aliás, no primeiro ano fizemos uma homenagem especial, in memorian, a João Bosco Marcelino, porta-estandarte dos Fuliões do Samba durante décadas. Mas nós percebemos que os dois blocos juntos descendo a ladeira provocava muita confusão, pois cada bloco com suas músicas misturava tudo... Resolvemos então, este ano, inverter o percurso e, no final, nos encontrarmos lá no Café Oeiras. A mudança foi boa, resultou muito legal o encontro.
Rogério Newton: você acha que o carnaval pode contribuir para a vitalidade comunitária?
Xico Carbó: o Carnaval, como todo festa popular, pode agregar algo vitalizante na comunidade No entanto, não acredito que, em Oeiras, a festa de Momo contribua para isso. Exceto os "Fuliões do Samba", não há nada no carnaval de Oeiras com um forte sentido comunitário. Os educadores, os observadores sociais, as pessoas que trabalham com cultura deveriam refletir sobre isso. Nas nossas primeiras reuniões, comentamos que o Joga o Barro na Parede talvez pudesse, voluntariamente, abraçar uma função social além da carnavalesca, no entanto não voltamos a tratar do tema. Mas estamos dispostos a fazer algo melhor nesse sentido. O que fizemos em 2008, lá em casa, com crianças do bairro Várzea, e este ano, no Ponto de Cultura Quilombo do Rosário, sob a coordenação de Vanda Queiroz, foi ministrar duas oficinas de máscaras. Este ano, trabalhamos com umas trinta crianças, muitas delas boas ritmistas e sambistas. Voltamos a nos encontrar com elas no desfile dos Fuliões do Samba, quando os dois blocos se encontraram lá no Café Oeiras. Foi outra experiência muito legal.
Rogério Newton: na sua opinião, quais são os requisitos (se os há) para um bom folião e para uma boa festa de carnaval?
Xico Carbó: se você gosta de carnaval, basta sua alegria, sua espontaneidade, criatividade para fantasiar, brincar e quem sabe até ousar. Hoje em dia, é muito comum ver-se, sobretudo nas cidades maiores, a intervenção do poder público no carnaval. Isso, em princípio, não é bom nem ruim. Depende como ela se dá. Se é feita com propósito de colaborar com a festa, sem descaracterizá-la, pode ser benéfico.
Rogério Newton: no carnaval de Olinda e Recife, a gente vê que a Prefeitura paga pequenas bandas tradicionais para ajudarem na animação do carnaval nas ruas. Nesse exemplo específico, o poder público ajuda o carnaval e os músicos locais, que precisam ganhar dinheiro.
Xico Carbó: é talvez um bom exemplo de como o poder público estimula o carnaval e todos saem ganhando. Aqui em Oeiras, na nossa alvorada e no nosso desfile, nós sempre contamos com os músicos da Banda Santa Cecília, que não tem instrumentos. Os 4 músicos que participaram tocaram com seus próprios instrumentos. Lembro de uma crônica que fala do desejo de um oeirense que adorava carnaval, o Eurico Rêgo. Ele queria ser sepultado ao som de marchinhas de carnaval, mas esse desejo não se materializou. Diz-se que Oeiras é “terra de músicos”. Penso que o estímulo aos músicos locais é um ponto importantíssimo.
Rogério Newton: fala-se muito que a sociedade contemporânea atravessa uma crise sem precedentes e um dos principais sintomas é uma certa apatia social. Você acha que isso retirou o vigor do carnaval de Oeiras, ou há outros motivos?
Xico Carbó: a apatia social não deixa de interferir. O nível de organização social é, creio, muito baixo. Por isso, volto a insistir no ponto que acho fundamental: a vitalidade comunitária. Esta só existe se há confiança, camaradagem e desejos de compartilhamentos sinceros. As pessoas precisam sentir-se estimuladas a criar laços de comunhão. O carnaval, como outras atividades coletivas, é um fator importante pra isso. A crise realmente existe, mas há exemplos notáveis de resistência, como o dos Fuliões do Samba. Posso dizer também que nossa experiência com as oficinas para crianças da Várzea e do Rosário foi muito estimulante. O que as pessoas talvez mais necessitem é de canais, de ferramentas para expressar suas potencialidades, muitas delas adormecidas.