
Gardner, o barão e o fardo histórico

Rogério Newton
Quando George Gardner chegou a Oeiras, em 1839, não teve o que podemos chamar uma recepção calorosa. Ao aproximar-se do “palácio provincial”, o médico e naturalista escocês foi recebido por uma “criatura da mais abjeta aparência imaginável”, que o tratou exatamente como o fizera com seu cavalo: o mendigo, isto é, a sentinela, deu um salto à frente, agarrou as rédeas do animal, empurrando-o para a rua. Gardner foi então convidado a tirar as esporas, sendo-lhe concedida licença para entrar.
Dentro do “palácio”, “de aspecto muito ordinário”, Gardner esperou quinze minutos por Sua Excelência, que o recebeu de ceroulas, os pés metidos num par de chinelos velhos e mais de um rosário ornado de crucifixos e “outros berloques” ao pescoço. O Presidente da Província trazia nas mãos as cartas de apresentação do cientista, pediu licença para lê-las e desculpas pela exiguidade do traje.
Nem a leitura das cartas nem as explicações do visitante, porém, foram suficientes para esclarecer ao Presidente o motivo da presença de um cientista branquelo em pleno sertão brabo do Piauí. A inteligência do Exmo. Sr. Presidente da Província do Piauí não permitia ver nas coleções botânicas de Gardner outra destinação que não a de se converterem em remédios.
Esse episódio, envolvendo a figura do Barão da Parnaíba, que tinha no rosto “expressão desagradável e sinistra”, foi relatado pelo próprio Gardner no seu Viagem ao Interior do Brasil, livro que conta as viagens do botânico, de 1836 a 1841. Nas suas andanças, Gardner recolheu e enviou para o seu país mais de 6 mil espécies, mas o seu livro não se detém apenas em considerações do seu ofício: ele faz observações sociológicas e históricas verdadeiramente interessantes.
Sobre o Barão da Parnaíba, por exemplo, Gardner traça um perfil vigoroso, mostrando o caráter de um homem ignorante, porém astuto, que durante vinte anos governou o Piauí, com mão de ferro.
Convidado frequente à mesa do Barão, Gardner passou quatro meses em Oeiras, tempo que proporcionou um capítulo de Viagem, em cujo relato a pulsação da vida está presente. Por isso ele agrada e agita o leitor, embora o historiador exigente torça o nariz sob o “pince-nez”.
A fixidez documental tem provocado malquerenças às contemplações de Gardner pelo fato de muitas destas se fundarem no testemunho vivo da cultura oral. Nesse caso, perde-se muito em dialética, pois o testemunho de Gardner atiça o fogo da revisão histórica. Seu depoimento atrai não pelo “pitoresco”, mas porque proporciona reflexões sobre nossa formação histórica.
As trampolinagens do Barão da Parnaíba - que Gardner sacou logo – andavam na boca do povo, embora ausentes nos documentos. Admitir que são falsas ou muito provavelmente verdadeiras é tão grave quanto reconhecer que elas podem tranquilamente serem atribuídas aos barões de hoje em dia.
Certa aridez moral da nossa história tem raízes subterrâneas, mas certamente se revela na figura do Barão da Parnaíba e em comportamentos como o da sentinela que recepcionou Gardner em Oeiras. O palácio, “de aspecto muito ordinário”, não será a casca reveladora da carne?
O presente é a resposta e não será também consequência do barro dos 300 degredados portugueses enviados para a Vila da Mocha, pouco tempo depois de sua instalação, em 1717?
Por razões como essas, nossa história é um fardo muito pesado. Mas, como diziam os antigos, a história é também mestra da vida. No nosso caso específico, ela ensina que o passado, como diria Mario de Andrade, é lição para se meditar, não para reproduzir.