Um homem consequente
Por Rogério Newton
Não sei por que, mas a primeira lembrança que me ocorre de Gerson Campos é tê-lo visto, uma vez, entrar pela porta lateral da igreja, dirigir-se à frente dos fiéis e fazer a leitura da missa. Não esperou o sermão do padre nem nada. Por uma porta do lado oposto, saiu e foi ter com os amigos, no Café Oeiras, para começar a noite.
Eu o via na praça, na rua, na feira, em jogos de futebol, uma de suas paixões, em muitos lugares, quase sempre bem falante e brincalhão, acompanhado de amigos e de mulheres, que o adoravam. Tinha a voz bonita e a usava em ocasiões de vária sorte: rodas de bate-papo, sessões solenes, serenatas, locuções do partido político de sua família...
Quando o conheci, já havia retornado de Recife, onde deixou por terminar o curso de Ciências Sociais, na Universidade Católica de Pernambuco. Seu regresso para Oeiras, dez meses antes da edição do AI-5, é bastante sintomático. Não só por causa do ano, mas também pelas circunstâncias. Gerson fazia parte do elenco do TUCA Recife (Teatro da Universidade Católica de Pernambuco) e tinha ido apresentar a peça A Derradeira Ceia, do dramaturgo pernambucano Luiz Marinho, no V Festival Nacional de Teatro de Estudantes, organizado por Paschoal Carlos Magno, na Aldeia de Arcozelo, Rio de Janeiro, em 1968. Quando o grupo retornava para Recife, Gerson se desgarrou e foi para Oeiras. Em carta, de 15/11/1968, o amigo e conterrâneo José Haroldo Tajra Reis escrevia-lhe de Recife, comunicando as providências que estava tomando acerca do trancamento do curso universitário e da estante de livros, conservada com zelo pela dona da pensão onde residira.
HIPÓTESE POLÍTICA
Para mim, permanece o enigma pelo qual Gerson resolveu voltar a Oeiras naquele emblemático 1968. Talvez o bom senso o orientasse a ficar na capital pernambucana, concluir o curso superior, continuar a trajetória como ator e outras atividades de sua alma inquieta e sensível. Mas não. Num rompante, regressa à terra natal, onde falece, cinco anos mais tarde. O coração, que já havia sofrido dois enfartes, não aguentou a emoção de ver o gol que classificou a Seleção de Oeiras para a fase final do Intermunicipal, aos 41 minutos do segundo tempo, no estádio de futebol que, hoje, leva o seu nome.
O testemunho de amigos e familiares podem esclarecer os motivos da volta do exílio. Tenho pra mim que a situação política convulsa de então contribuiu para isso ou, pelo menos, serviu como pano de fundo iniludível. Leitor ativo, participante do meio universitário e do grupo de teatro, Gerson conhecia as contradições históricas, sociais e políticas, embora seus escritos não apontem para a arte engajada, tão em voga na época. A julgar pelo que produziu como cronista, poeta e homem de teatro, não simpatizava com as esquerdas. Porém é fato incontestável que o movimento estudantil e o teatro eram alvos da repressão. Embora não seja conhecida nenhuma afirmação sua de que tenha retornado a Oeiras por motivos políticos, essa hipótese não está fora de cogitação, mesmo se considerarmos a existência de fatores existenciais e afetivos.
Em entrevista, ainda inédita, concedida ano passado, a atriz Sonia Paulo Sérvio, que atuou sob direção de Gerson em Oeiras, afirma que ele lhe falou sobre um padre amigo, participante do movimento estudantil em Recife, que ficou vários dias desaparecido. Quando o encontraram na rua, parecia um mendigo e não reconhecia mais ninguém. Ela relembra que Gerson se referia a estudantes considerados subversivos, que tinham de se esconder da repressão. “Ele nunca afirmou, mas acredito que foi isso que o fez retornar a Oeiras, sem terminar o curso universitário”, concluiu a entrevistada.
Voltando ao seu lugar de nascimento, Gerson participa ativamente da vida cultural. Não havia fronteiras que não pudessem ser transpostas. Afetuoso, amava as pessoas e a existência e com esta tinha um pacto de vivê-la de forma intensa. Parafraseando uma canção de Gilberto Gil, sua ideologia era o nascer do dia e sua religião, a luz na escuridão.
Lamentavelmente, a maioria dos registros escritos até aqui sobre as atividades desenvolvidas por Gerson Campos olvida ou minimiza fatos culturais de sua biografia e resvala para o circunstancial e o anedótico. Apesar de ser lembrado como poeta, Gerson era melhor cronista. Os quatro Caleidoscópios, publicados no jornal O Cometa, em 1972, são exercícios de crônica filiada à estética modernista. Num estilo ágil e bem-humorado, discorrem sobre fatos e personagens aparentemente desimportantes. Sem pompas na linguagem ou cenários retumbantes, quebram o monumental e a ênfase, tão ao gosto da maioria dos literatos da província.
UMA PAIXÃO CHAMADA TEATRO
Como homem de teatro, Gerson Campos é quase completamente incompreendido. Ainda hoje, em Oeiras, aquela forma de arte não tem a relevância que merece. Porém, à frente do Teatro Experimental da Juventude Alegre Oeirense (TEJAO), sacode o marasmo local e consegue levar público ao teatro. O Pobretão (1969), e Tristão e Isolda (1971), as duas peças que dirigiu em Oeiras, receberam lotação completa no auditório da Escola Normal. Ambas foram anunciadas com antecedência, tiveram bilheteria paga e folheto explicativo, com todos os créditos, atitude até então inédita na cidade. Tristão e Isolda foi também apresentada pelo grupo em Floriano. Na montagem das duas obras, certamente, foram valiosos os anos de experiência teatral em Pernambuco.
No texto que escreveu para o folheto distribuído ao público por ocasião da estreia do TEJAO, Gerson Campos mostra-se bastante consciente do seu projeto. Embora reconheça a “fase embrionária” do grupo, sem possibilidade de render “o que esperaria uma plateia exigente”, ele lamenta o descaso para o teatro em Oeiras, critica o conformismo, mas reconhece a potencialidade dos artistas amadores: “Infelizmente, o teatro em Oeiras não tem o destaque que deveria merecer, em sendo um dos melhores e maiores veículos de divulgação de Cultura. Talvez por descaso, comodismo, misantropia, ou mesmo por demorada falta de experiência. Nunca pela ausência de artistas amadores, pois que os temos aqui em grande potencial”.
Na sua entrevista, Sonia Paulo Sérvio, atriz principal de Tristão e Isolda, afirmou que Gerson Campos alimentava a esperança de trabalhar permanentemente com teatro. Era um projeto dele, em parte concretizado. Ela, porém, mencionou uma faceta quase nunca lembrada: a do homem que sofria com as dores do mundo e de si próprio, o ser humano que também convivia com o silêncio e a introspecção.
“LAMENTO POR NOSSA TERRA”
Os cinco anos de Gerson Campos em Oeiras, após a volta de Recife, ele os viveu, já dissemos, com intensidade, mas não em um mar de rosas. Com a cidade, por exemplo, a relação azedou de tal maneira que decidiu ir embora. Com esse objetivo, escreveu carta a Antonio Francisco, amigo de infância, pedindo-lhe emprego em São Paulo. Na missiva, de 26/08/1970, explica as razões de sua malograda tentativa e traça um perfil crítico de Oeiras, de torturante atualidade: “Em nossa terra o campo é mínimo para se vencer na vida (disso és bom entendedor). Aqui só politiquice rasteira e interesseira, o que me enoja e me faz descrente dos conterrâneos. Lamento por nossa terra, pelo seu atraso, pelo seu futuro bisonho (...). Preciso sair daqui o mais rápido possível, pois cada dia me embruteço mais, me torno um revoltado comigo mesmo e me vejo cada vez mais tragado pelo indiferentismo e misantropia dos que me rodeiam.”
Essa atitude de Gerson Campos não lhe traz nenhum demérito. Pelo contrário, prova que o cronista, poeta e homem de teatro não estava distanciado da realidade. Sentia como suas as alegrias e as dores da cidade e do mundo e soube, como poucos, celebrar a vida como a mais suprema dádiva.
*Agradeço ao Carlos Rubem Campos Reis por ter colaborado com informações e documentos sobre Gerson Campos.